Juremir Machado da Silva

Intelectuais que derrubaram Jango em 1964

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Intelectuais que derrubaram Jango em 1964 João Goulart | Foto: Reprodução PDT

De Carlos Drummond de Andrade a Antônio Callado, grandes nomes da cultura brasileira ajudaram a derrubar João Goulart em 1964. Mais tarde, muitos se tornariam adversários da ditadura, especialmente depois do AI-5, de 13 de dezembro de 1968, que endureceu o golpe. Em meu livro “1964, golpe midiático-civil-militar” (Sulina), mapeio intelectuais que se empenharam na queda de Jango ou saudaram o fim.

“É quase impossível atravessar uma vida jornalística sem um passado a lamentar. Antônio Callado tornou-se um dos grandes escritores brasileiros da segunda metade do século XX. Quem leu seu romance “Quarup”, narrativa poderosa tida, talvez, pela mais engajada do seu tempo, não imagina, porém, a mediocridade reacionária que, um dia, ele produziu, intitulada “Jango ou o suicídio sem sangue”. Escorando-se num Shakespeare mal adaptado, mais um, transformou Jango num fantasma sem alma: ‘Sabia-se despreparado. É pessoalmente um homem indeciso e os que o conhecem e respeitam têm um adjetivo que lhe aplicam sempre: humilde. Aceitou, empurrado por Brizola, o encargo. E vagou em seus paços do Planalto e Laranjeiras, durante quase três anos (ou três atos) lutando contra a própria inoperância. Dia 13 de março deste ano, incapaz de suportar por mais tempo o desnível entre o que era e o que devia ser, Jango-Hamlet saiu para o comício. Tomara uma refeição ligeira de manhã, na base do chimarrão, e depois, durante todo o dia, não comeu mais nada. Tinha bebido muita limonada e em seguida uísque (nos dois últimos governos da República esse personagem escocês desempenhou papel macbethiano)’. O tom foi dado. Jango será apresentado como bêbado, frouxo, incompetente, manipulado, desejoso de mostrar-se mais do que era, em permanente luta com sua falta de personalidade.

O perfil de um presidente fantoche ajudará a justificar a necessidade da intervenção militar. Pilotando um psicologismo barato, Callado fez de Jango um coitado: ‘E Jango, diante do fantasma, mandou brasa no comício do dia 13 de março. Suando em bicas, o colarinho aberto, o ralo cabelo em desalinho, deu provas de valentia ao próprio Leonel Brizola encampando as refinarias particulares’. Tudo o que Jango ousou converte-se, no texto de Callado, em motivo de chacota, em reles tentativa de afirmação diante do cunhado impulsivo, em fanfarronice para se autoafirmar.

[…]

Antônio Callado, diante desse furacão de lucidez, recorre à enormidade dos golpes baixos: “E Jango continuou, bebendo sua limonada, pois o uísque só começaria de tardinha. ’Hoje vou encampar as refinarias particulares para silenciar os que dizem que eu levei dinheiro da Capuava’. Tudo reduzido a vingança, acerto pessoal, bebedeira, vaidade, questões umbilicais. Callado vai mais alto na baixaria. Maria Thereza ‘teria mesmo esquecido, ou adiado, planos seus de aparecer numa peça teatral. Estava com ator em casa’. Um ator, Jango, que, segundo o jornalista, em texto sobre tema tão grave, experimentava, desde janeiro daquele ano, um novo remédio para calvície, “carbonina”, e tinha um mal incurável: “Um vício que nunca mais devia perder: o de aumentar o salário mínimo. Começou na base do 100%’. Que horror! Que crime! ‘Vício’ adquirido em 1953 como ministro do Trabalho de Getúlio Vargas. ‘Vício’ que contribui certamente para o diagnóstico inapelável de Callado: ‘De janeiro de 1963 até sua deposição a 31 de março de 1964 Jango criou para o País uma espécie de pesadelo’. O pesadelo do interesse por uma população mantida na semi servidão: ‘A presidência da República foi transformada numa espécie de grande Ministério do Trabalho, com a preocupação constante do salário mínimo’. Um despautério. Um crime hediondo.

Em duas dezenas de páginas, Antônio Callado cita três vezes o defeito na perna esquerda de Jango, atribuindo-lhe, por causa disso, complexos, maldades e vinganças. Numa delas, estabelece uma relação maldosa sem o menor fundamento, salvo o desejo de ser perverso e de usar a palavra como arma letal: ‘Ao que se sabe, muitos cirurgiões lhe garantiram, através dos anos, que poderia corrigir o defeito que tem na perna esquerda. Mas o horror à ideia de dor física fez com que Jango jamais considerasse a sério o conselho. Talvez por isso tenha cometido o seu suicídio indolor na Páscoa’. Duas páginas depois, volta ao ataque: ‘Pobre Jango. Tinha ido pescar. Tinha tocado para São Borja com Dona Maria Teresa, as crianças, João Vicente e Denise, e o seu valet, o seu mordomo Jeeves. Nosso humilde e simples ex-Presidente tem um manservant, devido ao defeito na perna’. O estilo jornalístico udenista-lacerdista explora limitações físicas como falhas de caráter e de vontade. Tudo isso hoje tem nome: campanha de desqualificação pela mídia. A exemplo de Alberto Dines, Callado fala demais e confessa sua adesão desabrida ao golpe: ‘O triste, no episódio tão pífio e latrino-americano da deposição de Jango, é que realmente não se pode desejar que as Forças Armadas não o traíssem. A expurgante situação militarista que se instalou no poder não alegra ninguém, mas como é que se ia continuar com Jango’. Foi assim”.

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