Juremir Machado da Silva

Jango sonhava em voltar para casa

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Jango sonhava em voltar para casa Foto: Divulgação / Dossiê Jango / ABr

Jango vai morrer.

Todos os dias, ele espera. Contempla um ponto no horizonte, que pode ser o Brasil, e espera pacientemente. Espera algo que lhe fará reviver, ressuscitar, explodir.

Talvez isso se reflita, sem que ninguém note, na sua maneira de contemplar as nuvens, como se no seu olhar uma sombra espessa tomasse o lugar de imagens movediças, ou na gota de suor que se imobiliza na sua testa ampla quando sai do sol e encosta a mão na casca rugosa de uma árvore de sombra generosa. Quem pode observar aquilo que não se dá a ver antes de não poder mais ser visto? Ou haverá coisas que só podem ser vistas depois que já se extinguiram deixando rastros esparsos no ar pesado?

Em Bella Union, ele faz a sua última aterrissagem.

Como é ter a morte nas entranhas sem o saber? Como será carregar o fim num coração desassombrado de quem tem muito, teve muito mais, soube sonhar, entregar-se e perder? Como é viver um dia depois do outro com a sensação de ter sido abatido em pleno voo, não um voo de um pássaro qualquer, mas o voo altaneiro da “grande aventura”, o voo que poderia ter feito milhões de homens também baterem asas? Jango não é de pieguices nem de grandes metáforas. Não é raro, porém, que contemple longamente as suas mãos e, em seguida, sem transição aparente, fite o horizonte da campanha como um animal na quietude mais pura e tensa da angústia farejando o sinuoso caminho de casa, o caminho por demais conhecido, como dizem os gaúchos da sua São Borja, da querência.

Jango vai morrer.

Ele é um herói.

Um herói que não se vê assim e morrerá no exílio.

Carrega a morte nos olhos sem dar na vista. Talvez saiba disso ou pressinta que a sua hora, a “mala hora”, como dizem os camponeses com quem convive nas suas estâncias uruguaias e argentinas, chegou, essa hora de acertar as contas com o destino, esse nome dado ao desconhecido, ao arbitrário, esse tempo misterioso e gratuito chamado existência, essa passagem – não confundir com ponte – pelo mundo sem garantia de coisa alguma. Quem poderá desmentir essa possibilidade? Os amigos sabem que ele tem “memória de elefante”, que jamais esquece um rosto, um nome, uma fisionomia, um olhar, uma pessoa, algo que transparece no brilho dos olhos iluminados quando se depara com alguém capaz de tirá-lo desse confinamento interior que disfarça tomando mate de manhã – quatro horas de sono lhe bastam –, lendo jornais, proseando, pescando, cavalgando, preparando um arroz carreteiro, trabalhando como se fosse um simples peão, fazendo negócios em profusão, contando e ouvindo histórias, entregando-se amavelmente à vida como se não lhe pesasse nas costas o fardo da deposição em 1964 e não sentisse na boca o amargor, misturado com uísque, das derrotas políticas nascidas das suas maiores vitórias.

– Quando eu voltar ao Brasil… – comenta vez ou outra.

Quem poderá desmentir que no seu último domingo ele tenha repassado rostos, frases, gestos, situações, imagens e fatos de tudo o que lhe aconteceu, pois aquilo que lhe aconteceu está dentro dele como uma doença incurável alastrando-se silenciosa ou ardilosamente? Quem poderá negar que tenha pensado no essencial, naquilo que sempre soube, mais do que qualquer um, a verdade suprema da sua queda, a chave do golpe que o arrancou do poder porque passara a realmente exercê-lo? Quem poderá refutar que, antes de começar a sua última viagem, tenha dito para si – já sem raiva, mas com tristeza – como certamente o fizera milhares de vezes em 12 anos de exílio, esse desterro do qual só se livraria morto:

– Fui derrubado com o apoio dos Estados Unidos.

     (Silva, Juremir Machado da. Jango, a vida e a morte no exílio. Porto Alegre: L&PM, 2013).

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