Juremir Machado da Silva

Carreiras obstruídas na grande imprensa

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Carreiras obstruídas na grande imprensa Imagem: Reprodução STF

A história cobra caro pela coerência em momentos de crise política. A operação “Hora da Verdade”, da Polícia Federal, trouxe à tona as provas de que Jair Bolsonaro e sua patota queriam um golpe de Estado. O vídeo de uma reunião ministerial na qual o presidente da República e sua turma pregam a “virada de mesa” não deixa espaço para qualquer dúvida. Diante da certeza da derrota nas urnas, o capitão e seus comandados choravam suas mágoas e gritavam por golpe. O general Augusto Heleno foi dos mais explícitos. Para ele, era hora de agir. Bolsonaro, apesar de admitir que não tinha provas contra as urnas, exigia uma declaração assinada pelos seus ministros afirmando a impossibilidade de confiar na transparência do sistema eleitoral. O presidente sonhava com o apoio da OAB para o seu plano demente.

Na Rádio Guaíba, em Porto Alegre, desde o começo sabíamos que Jair Bolsonaro não era um democrata e que o presidente flertaria com o golpe de Estado. Aos poucos, em nosso dia a dia, as restrições à liberdade de atuação foram crescendo. Nando Gross já escreveu um excelente artigo sobre isso. Ele, que era gerente de programação, seria o primeiro a cair por continuar defendendo pluralismo e seriedade na prática cotidiana do jornalismo. Eu fui o segundo. Fazíamos um jornalismo de escola, dando voz a todos os lados, seguindo a lição do filósofo liberal John Stuart Mill, de quem sou fã e leitor contumaz, de estimular o contraditório. Essa era, por exemplo, a linha do Esfera Pública, programa de debates que eu criei, em março de 2010, e apresentava com Taline Oppitz. Com a bolsonarização fulminante da empresa, o pluralismo virou um problema. A esquerda não deveria mais falar. Dar voz à oposição seria visto como inclinação comunista.

Eu comecei a cair quando insisti em entrevistar o ex-presidente Lula. Seria a primeira entrevista do petista para o Rio Grande do Sul depois de sua saída da cadeia. O Esfera Pública fizera a última grande entrevista com Lula antes da sua prisão. Era jornalismo puro. Nando Gross, que ainda estava na rádio, matou no peito. Veio, porém, a ordem para eu contatar o “andar de cima” pouco antes de começar o programa. O chefão interditou o nosso “furo”. A entrevista foi derrubada com Lula plugado para entrar no ar. Tentei outra vez. Recebi a ordem taxativa: “Lula, não”. Os bolsonaristas de ocasião aproveitaram para ocupar todo espaço. O jornalismo pluralista estava condenado. Quem não se dobrou, dançou. Nando se foi. Continuamos, por algum tempo, driblando e tentando jogar. Caí depois de uma entrevista com Fernanda Melchionna (PSOL) e de criticar a escolha para reitor da UFRGS, por influência do deputado Bibo Nunes, de um professor quase sem votos. Eu era um morto-vivo depois das tentativas de entrevistar Lula.

Tudo isso é sabido. A questão é outra: fizemos o nosso trabalho corretamente, como fazíamos havia dez anos, e fomos punidos. Estávamos certos. Jair Bolsonaro não respeitava as “quatro linhas da Constituição”. Quem pagará pelo estrago feito, por nossas carreiras na grande imprensa violentamente interrompidas, destruídas, pisoteadas, com todas as portas fechadas? O bolsonarismo atropelou dois veículos de comunicação, a Rádio Guaíba e o Correio do Povo, que, mesmo comprados pela Rede Record, pertencente à Igreja Universal do Reino de Deus, continuavam a fazer jornalismo, como, na imprensa em geral, com limitações e adaptações. A bolsonarização acentuada da empresa, a partir de março de 2020, em plena pandemia, virou o jogo. Foi uma escolha infeliz, errada, lamentável. A casa sabe disso, tanto que já demitiu ou afastou os principais executores da sua bolsonarização.

A história não costuma pedir desculpas aos que ficam pelo caminho. Eu fui demitido no auge da minha carreira de radialista e colunista de jornal, tendo audiência, patrocinadores e prestígio. Como fui etiquetado de petista, por dar espaço à esquerda e não esconder minha antipatia por um governo de extrema direita, e, desiludido, entrei na justiça, fui arquivado por toda a grande imprensa do Rio Grande do Sul. Há três coisas, ainda mais juntas, que os veículos de comunicação não costumam perdoar por aqui: ficar com fama de esquerdista, entrar na justiça e passar dos 60 anos de idade. O conservadorismo, o corporativismo e o etarismo correm soltos.

E assim nossas carreiras nos veículos tradicionais chegaram ao fim. Caímos, como Jango em 1964, no dizer de quem viveu a época por dentro, não por nossos erros, mas por nossos acertos. Fomos para o jornalismo da internet. Matinal vai bem, obrigado, superando até o fato de que a galera da internet não gosta muito de jornalismo (ponderação, equilíbrio, contraditório e argumentação). Prefere a pegada forte da opinião radical e sem contestação ou o entretenimento (espetacularização, gameficação, caricatura, teatro) e a autoajuda. Este texto é, diante das revelações que se acumulam, uma constatação: fizemos o que nos cabia fazer, fomos despejados, talvez nos sobre uma nota de rodapé no livro da história a ser escrito dentro de cem anos. Felizmente, colegas maravilhosos souberam se proteger e permanecer na trincheira do bom jornalismo, salvando o que foi possível. Tiro meu chapéu para eles, entre os quais, Telmo Flor e Taline Oppitz.

Albert Camus, num texto às vésperas da Segunda Guerra Mundial, listou quatro coisas que um jornalista precisa fazer em tempos sombrios: ter lucidez, saber dizer não, usar a ironia e perseverar. Creio que não fui capaz inteiramente de praticar qualquer delas. Sempre acreditei no que chamo de teoria da trincheira: ficar dentro para dizer o possível e necessário mesmo se poder dizer tudo. Anedota: o nome “Esfera Pública” foi escolhido por mim, contrariando os marqueteiros, que preferem expressões sem força conceitual, como espaço livre, para, na esteira do grande pensador alemão Jürgen Habermas, indicar que todos teriam voz no debate da coisa pública.

Às vezes sonho que me dizem: “Perdeu, mané”!

Tambor tribal

Cada vez mais a mídia traduz tudo em termos de celebridades, especialmente as suas celebridades. Parece que parodia Guy Debord, o criador do conceito de “sociedade do espetáculo”: o espetáculo não diz nada além de quem é celebridade, aparece; se aparece, é “celebridade”. O meio, como denunciava outro grande, Jean Baudrillard, não se respeita mais e toma-se pelo acontecimento. Na cobertura do carnaval do Rio de Janeiro, a Globo dispensou os jornalistas e escalou a turma do entretenimento. Resultado: as notícias ficaram de fora (atropelamentos, alegorias desabando, problemas de evolução). As celebridades apropriaram-se do carnaval, a festa do povo, e cobram cachê para dar o ar sem graça. O carnaval da Bahia podia usar imagens de anos anteriores e ninguém notaria, tipo “lá vem a Ivete…”

Algumas manchetes dos sites jornalísticos:    

Imperatriz Leopoldinense leva misticismo à Sapucaí com Rafa Kalimann

Gabi Martins é traída por fantasia e deixa seios de fora: ‘Chorei demais’

Após incidentes, Ivete chora e considera despedida do Carnaval: ‘Angústia’

De Tiazinha a Frida Kahlo, Deborah Secco causa com fantasias em camarote: ‘Me inspiram’

Não é só por isso’, diz Anitta sobre receber cachê de R$ 1 milhão no Carnaval

Parêntese da semana

“Parêntese #212: Folia entre filmes e leituras”. A revista indicou filmes para quem pretendia descansar no carnaval. As sugestões estão valendo. Por exemplo, na apresentação de Luísa Kiefer: “Caroline Richter resenha o longa-metragem argentino Fechar os olhos, de Víctor Erice. O filme, que estreou no Festival de Cannes no ano passado, tem toques de autoficção, com referências à carreira do diretor e ao cinema mundial. Mas, com sua trama elaborada expande-se para um questionamento sobre os limites entre realidade e ficção, vida e cinema.

Frase do Noites

Lusco-fusco: “Perder é do jogo. Censura é trapaça”.

Imagens e imaginários

No Pensando Bem, que vai ar todo sábado, 9 horas, na FM Cultura, 107,7, em parceria com Matinal, revista Parêntese e Cubo Play, e apoio da Adufrgs Sindical, Nando Gross e eu entrevistamos o cineasta gaúcho José Pedro Goulart. Uma conversa sobre cinema gaúcho, curtas, publicidade, jornalismo e muito mais, com bom humor e leveza.

Escuta essa

Carnaval acabou, resta a nostalgia. Que tal ouvir a “Marcha da quarta-feira de cinzas”, de Vinicius de Moraes e do saudoso Carlinhos Lyra, que partiu no fim de 2023 – na versão, quem acompanha é Toquinho. Afinal, é preciso cantar.

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