Juremir Machado da Silva

Dominique Wolton: “É preciso parar Putin”

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Dominique Wolton: “É preciso parar Putin” Dominique Wolton (à esq.) e Juremir Machado, em Paris (Foto: Arquivo pessoal)

Sociólogo francês, 74 anos, especialista em comunicação política, pesquisador do CNRS (Centro Nacional de Pesquisa Científica da França) e diretor da prestigiosa revista Hermès, aponta nesta entrevista para o Matinal, os erros da Europa e dos Estados Unidos na gestão da crise entre Rússia e Ucrânia e não hesita em dizer que Vladimir Putin é um ditador que precisa ser parado antes que provoque uma guerra mundial.

Matinal – Quem é o culpado pela guerra na Ucrânia?
Dominique Wolton – É preciso pensar na história. Toda vez que fazemos muitas concessões a um ditador acabamos vendo a guerra chegar. Isso nos remete aos acordos de Munique, de 1938. Pensou-se que se podia ceder para garantir a paz. O resultado foi o que sabemos. Terminamos na Segunda Guerra Mundial. Vladimir Putin é um ditador, um autocrata. Especula-se que possa estar louco, vítima do seu medo da Covid-19. Certo é que está se aproveitando das hesitações ocidentais e de certa covardia das democracias para avançar sobre a Ucrânia. O seu projeto é reconstruir o território da União Soviética. As pressões econômicas podem não surtir os efeitos desejados, além de que pesam também sobre os países da Europa, pois as economias estão interligadas. A culpa é de todos na medida em que não se fez o suficiente para evitar o pior. A responsabilidade maior, porém, é de Putin e da sua visão paranoica.

Matinal – O conflito poderia ter sido evitado?
Wolton – Para isso teria sido necessário agir de outro modo no momento oportuno. Em 1991, com a queda do império soviético, o Ocidente foi muito arrogante com a Rússia. Parecia-se ter vencido para sempre. Quando se age assim se colhe ressentimento. O nacionalismo russo ressurgiu impulsionado pela nostalgia da grande União Soviética, que era pilotada pela Rússia. Putin é um produto dessa época. A sua mentalidade não é democrática. Ele só pensa em termos de relação de forças. Dizer isso, contudo, não justifica a invasão da Ucrânia nem a autoriza. Não fosse Putin um autocrata, as negociações continuariam.

Matinal – A Ucrânia é uma democracia?
Wolton – Sim. Muito mais, por exemplo, do que Belarus. O presidente chegou ao poder, em 2019, pelo voto popular. É conservador? Sim. Mas não é, como a propaganda russa tem dito, um neonazista. Há nazistas na Rússia, na Ucrânia e em outros lugares. No contexto russo e ucraniano se opõem dois nacionalismos ultraconservadores. Na Ucrânia essa tendência não é dominante, não está representada no parlamento e não caracteriza o governo. Muitas fake news têm sido espalhadas por Putin para justificar seus desatinos. Existe na Ucrânia um ódio histórico pela Rússia, produto das coletivizações agrícolas forçadas da época do stalinismo soviético, com expurgos e mortes em massa. É esse ódio que pode se exprimir de forma radicalizada pelos meios da extrema direita.

Matinal – Zelenski, presidente ucraniano, estava promovendo um genocídio das minorias russas?
Wolton – Ninguém na Europa acredita nisso. É falso. Havia um conflito nas regiões agora reconhecidas por Putin como independentes. Foi o que se tentou resolver com os Acordos de Minsk. A Rússia continuou botando lenha nessa fogueira. Putin vem desestabilizando regiões sensíveis para avançar no seu objetivo de construir a Grande Rússia. Fez isso, por exemplo, com a Crimeia. Não pretende parar. Se não for barrado, vai se sentir forte e continuar forçando a mão dos países ocidentais. Ameaças já foram feitas à Finlândia e à Suécia. Ele continua a fazer seu jogo.

Matinal – É imaginável um ataque à Suécia?
Wolton – Seria um ponto sem retorno. Se Putin não for parado, poderá levar ao desencadeamento de uma guerra mundial. Nunca se sabe como esses detonadores funcionarão. Certo é que uma linha foi ultrapassada.

Matinal – O avanço da OTAN foi um erro de geoestratégia?
Wolton – A OTAN tem uma política chamada de “portas abertas”. Ucranianos querem fazer parte da organização. A OTAN só poderá deixar de existir, do ponto de vista dos seus objetivos, quando a Rússia for democrática. Claro que o maior rival das democracias ocidentais é a China. No momento, duas ordens se delineiam, a dos países democráticos e a dos países autoritários marcados por nacionalismos muito fortes.

Matinal – Os Estados Unidos apoiaram um golpe na Ucrânia em 2014?
Wolton – Ah, não. Aquilo foi um episódio dentro do que se costuma chamar historicamente de “Primavera dos povos”. Os Estados Unidos podem ter apoiado, mas não produziram a insatisfação da população com um governo inepto pró-Rússia. Claro que também houve atuação de grupos de extrema direita com violência extrema. O atual presidente não foi colocado no poder pelo que se deu em 2014. Na Europa se tem clareza sobre tudo isso. Se a Ucrânia tem fama de abrigar uma extrema direita ruidosa, a realidade é mais complexa, com uma política governamental dentro da democracia.

Matinal – Putin produz fake news para justificar a invasão?
Wolton –
Sem dúvida. Falar em desnazificação da Ucrânia é um artifício de propaganda. Ao rotular o outro de nazista se obtém de muitos um salvo-conduto para qualquer ação. Os fatos, porém, não comprovam que o governo ucraniano seja nazista. O presidente é um judeu que teve familiares implicados na luta contra o nazismo. Se isso não faz dele um progressista, o seu conservadorismo não permite tampouco rotulá-lo de nazista. Nesse tipo de confronto há também uma guerra de desinformação.

Matinal – A esquerda europeia condena a invasão?
Wolton – A esquerda democrática condena a invasão. A esquerda marxista mais dura oscila. Prevalece certo antiamericanismo. A Europa, contudo, por sua experiência com guerras, teme o pior e não se autoriza bravatas ideológicas nesse terreno. O senso de responsabilidade impõe-se. Curioso é que parte da esquerda, que sempre defendeu a impossibilidade de ser neutro, faz agora a crítica do binarismo, estar de um lado ou do outro, o que é uma forma dissimulada de estar do lado de Putin.

Matinal – Uma nação soberana não deve ter o direito de escolher com quem se alia?
Wolton – Em democracias, sim. Na mentalidade de quem só raciocina em termos de relações de força, não necessariamente. Putin está tentando, com um senhor da guerra, fixar o território da sua dominação. Nesse seu suposto espaço de influência, pela força das armas, não aceita insubmissão. O discurso da autoproteção esconde uma vontade de poder.

Matinal – Putin agiu por saber que o Ocidente não poderia reagir para não provocar uma guerra mundial com armas nucleares? Ele descobriu o ponto frágil ocidental? E se ele avançar sobre outros países?
Wolton – Se avançar, haverá reação. Por enquanto, crescerão as sanções econômicas. Por mais que a Rússia tenha reservas acumuladas, vai sentir o baque. A Europa sofrerá por causa do gás russo. A perda, contudo, é dos russos também. Ainda que a China se torne parceiro econômico mais forte, a Rússia perderá mercados consideráveis. A Europa encontrará soluções enquanto busca a negociação. Pode-se tomar parte de um país como a Ucrânia, mas dominar todo o país por longo tempo é difícil. Além disso, uma guerra civil poderá afundar a Ucrânia na violência. O grande problema é a incomunicação. O Ocidente não sabe como se comunicar com esse mundo nacionalista autoritário, sem contar que ele mesmo se vê às voltas com emergências do tipo Donald Trump. Para lidar com uma figura como Putin, autoritária, paranoica e ressentida, é necessário ter competências de comunicação que parecem nos escapar. Há medo no ar.

Matinal – Como sair da crise?
Wolton – Uma hipótese improvável, mas não impossível, é que Putin venha a sofrer um revés interno a médio prazo. A população russa não o apoia massivamente, embora o tema. As desigualdades são crescentes no país. O Ocidente tem seus fetiches colonialistas e quer sempre se comportar como vencedor. Terá de negociar, negociar e negociar. E saber o momento de não se intimidar. Ainda será preciso ver como tudo se encaminhará. Mas a exclusão da Rússia do sistema bancário internacional poderá ser a saída ainda que com prejuízos de ordem econômica para os envolvidos. Sem contar que a Ucrânia poderá ceder numa mesa com a Rússia.

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