Lula e a travessia do deserto
Como nas famosas jornadas do herói, cujos passos foram descritos por Joseph Campbell, Lula aceitou o chamado à aventura, venceu obstáculos, fez sua travessia do deserto, enfrentou adversários poderosos e voltou. No primeiro discurso, depois de anunciado o resultado das urnas (eletrônicas), defendeu a pacificação do país e cravou uma frase fundamental: “É hora de baixar as armas”. Durante os quatro anos de governo de Jair Bolsonaro o Brasil viveu em “guerra”. O capitão presidente tinha por hábito desafiar os demais poderes e colocar fogo no circo. A Amazônia que o diga. Do ponto de vista pessoal o feito de Lula tem algo de inacreditável, que permite compará-lo a Getúlio Vargas, a figura política mais marcante da história brasileira, o homem que derrubado depois de 15 anos de muito poder (1930-1945), voltou consagrado pelo voto popular.
Como foi possível que Lula tenha conseguido articular uma aliança tão ampla em torno dele, envolvendo de Fernando Henrique Cardoso a economistas liberais como Armínio Fraga? A resposta tem a simplicidade de uma convocação: a defesa da democracia. A reeleição de Jair Bolsonaro assustava pela possibilidade de uma escalada antidemocrática. Neopopulista de extrema direita, Bolsonaro sonhava avançar sobre o judiciário, controlando o Supremo Tribunal Federal, para impor a sua ideologia baseada numa hierarquia social anacrônica. Em torno de Lula se organizaram os que consideram essencial jugular o machismo, a homofobia, o racismo, o obscurantismo e o armamentismo.
Dito isso, como quem reorganiza a mente depois de um furacão, resta projetar o futuro: Lula terá uma enorme responsabilidade pela frente. Não poderá errar. Terá de fazer um governo quase perfeito, sem a menor sombra de dúvida sobre a honestidade de todas as decisões que forem tomadas. A transparência terá de ser absoluta. O país precisa ser reconstruído. Em primeiro lugar, será necessário reinseri-lo na cena internacional. Não poderá ser um governo só do Partido dos Trabalhadores, mas a gestão mais ampla de uma frente. Aos bolsonaristas mais radicais, que sofrem com o resultado, resta dizer com bom humor: aceitem que dói menos. É a democracia, camaradas.
Continua...