Juremir Machado da Silva

Metamorfoses do tempo

Change Size Text
Metamorfoses do tempo Foto: Aron Visuals/Unsplash

Chega aquele momento em que se olha para frente e diz: o tempo passa. O estranho dessa afirmação é que ela faz pensar num tempo anterior imóvel. Acontece que nas diversas fases da vida o tempo é diferente. Na infância, não passa. Tudo que se quer é crescer. Mais tarde, depois que o tempo tiver passado, virá aquela vontade de voltar no tempo. Então, será tarde demais. Na adolescência, o tempo enlouquece: alterna instantes em que escapa entre os dedos com outros em que parece congelado. É o tempo das paixões. Sabe-se que a paixão é um péssimo relógio, que vive atrasado ou adiantado, dificilmente na hora certa.

O indivíduo adulto consulta relógios e calendários o tempo inteiro sem notar que o tempo, o seu tempo, passa rapidamente, salvo para aqueles que, a partir de certo momento, contam os dias para se aposentar. O tempo pode ser colorido, cinza, bege ou incolor. O idoso gostaria de esquecer o tempo e de eliminar relógios e calendários. Sente-se perseguido pela marcha inexorável dos ponteiros. Sim, o tempo é relativo, tão relativo que não passa de uma convenção, salvo para os organismos que se transformam enquanto a lua vai e volta numa contagem que soa como um tic-tac. Não há razão para se temer o tempo nem para implicar com ele, pois são apenas os anos escorrendo como gotas de gelo.

Se tudo passa, também esta crônica passará, ainda que as crônicas estejam entre as coisas mais permanentes de um universo perecível. Quando artigos, ensaios, tratados e teses são devorados pelo tempo, que se diverte matando cada ideia revolucionária, surge uma crônica cheia de frescor, apesar da marca de uma traça de computador numa das suas margens. Há quem não perceba que as únicas coisas imperecíveis são o canto de um pássaro ouvido numa madrugada há muito esquecida, a cor do céu naquele entardecer em que tudo aconteceu, embora do acontecimento pouco tenha restado, aquele sorriso colhido ao acaso de alguém que nunca mais se viu ou nunca mais se verá, aquela palpitação que se apagou depois de um verão inesquecível, mas estranhamente esquecido, exceto por essa aceleração súbita do coração quando um sorriso se acende na volta de uma esquina, uma dessas esquinas que nada nos dizem nem significam.

Num tempo de que não se tem mais notícia, num reino do qual nada mais se sabe, teria vivido um homem tranquilo, sereno, amistoso. Dele nada se esperava nem ele buscava se imortalizar. Talvez, no máximo, adiar a morte. Então, para passar o tempo, que insistia em se demorar em longos invernos e breves primaveras, ele escrevia crônicas, o que, por definição, sempre significou narrar os acontecimentos do tempo medido em dias, essa abstração luminosa que sempre caminha ao encontro da noite até se afundar na escuridão dos medos e dos esquecimentos. Uma das suas crônicas teria sido passada de geração em geração até se tornar apócrifa. Então ele viveu para sempre ainda que sem nome nem rastro.

Seria dele esta frase: o tempo é a única coisa que conta, exceto todas as outras que iluminam a existência, a começar por este dia.

RELACIONADAS

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.