Juremir Machado da Silva

O Estadão e a escravidão

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O Estadão e a escravidão O jornal Estadão nasceu com o nome A Província de São Paulo, em 1875 | Reprodução Acervo Estadão

O Estado de São Paulo, centenário jornal brasileiro poderia seguir o exemplo do britânico The Guardian, que resolveu admitir seu passado de ganhos com a escravidão e assumir seu pecado original marcado por editais de leilões de escravos. A seguir um trecho de meu livro “Raízes do conservadorismo brasileiro: a escravidão na imprensa e no imaginário social” (Record, 2017, p. P. 306-307).

*

“A primeira missão de um jornal no século XIX era sobreviver mais um dia. No site do acervo digital do Estadão, lê-se uma bela história:

‘O jornal O Estado de S. Paulo nasceu com o nome de A Província de São Paulo. Seus fundadores foram um grupo de republicanos, liderados por Manoel Ferraz de Campos Salles e Américo Brasiliense, que decidiram criar um diário de notícias para combater a monarquia e a escravidão’.   

República, talvez. Abolição, não. Somente a partir de 1885. Em 29 de janeiro de 1884, A Província de São Paulo trazia um longo “edital da praça”, encomendado pelo dr. Lupercínio da Rocha Lima, juiz de órfãos de São José dos Campos “na forma da lei”. Anunciava-se, na porta da Câmara Municipal da cidade, às 10 horas do dia 4 de fevereiro, uma sensacional liquidação, isto é, um leilão altamente diversificado, com itens tais como: “sessenta cabeças de porcos soltos à razão de 8$33 réis cada uma, que soma 500$000”, “um cavalo pombo para sela, avaliado em 100$000”, cavalo tordilho (R$ 70$000), cavalo rosilho (60$000), junta de bois pretos (150$000), touro pintado (50$000), vaca pintada com cria macho (60$000), vaca laranja sem cria (45$000), novilha amarela, novilha vermelha, tourinho pintado, tourinho fusco, vaca estrela amarela, mula tordilha negra, uma mula chamada Fineza, mula Mimosa, mula gateada, um pangaré chamado Rede, mula ruana, macho vermelho de nome Relógio, carro de bois, tábuas, madeiras, selim, máquina para beneficiar café, 6 mil pés de café novos, terras, 2 mil pés de café de oito anos, terras da fazenda Varadouro, mais 40 mil pés de café (250 réis o pé, total de 10:500000$000), a casa da fazenda, a senzala, a casa do engenho para café, a casa do moinho, etc. Vasto anúncio, enorme lista, negócios, grandes oportunidades.

Para arrematar um produto especial com várias peças:

‘Outrossim, este juízo recebe propostas em cartas fechadas, seladas e assinadas, desde agora, para ser abertas na audiência do referido dia 4 de fevereiro, a fim de ser arrematada por quem mais der, os escravos abaixo mencionados, em cujo ponto deverão comparecer os proponentes à sala da câmara municipal, sendo: Martim, cor preta, de 56 anos de idade, casado com a escrava Isabel, africano, de trabalho pesado, pedreiro, avaliado em 1:500$000. Isabel, cor preta, de 36 anos de idade, casada com o escravo Martim, crioula, de trabalho pesado, cozinheira (com três filhas ingênuas), avaliada em 800$000. Casemiro, cor preta, de 15 anos de idade, solteiro, crioulo, filho de Isabel, pra [sic] trabalho leve, para serviço doméstico, avaliado em 1:500$000. Joaquim, cor parda, de 41 anos de idade, casado com a escrava Maria, crioulo, para serviço pesado, avaliado em 1:200$000. Maria, cor preta, de 56 anos de idade, casada com o escravo Joaquim, africana, para trabalho regular, lavoura, avaliada em 400$000. Feliciano, cor preta, de 41 anos idade [sic], solteiro, crioulo, para serviço pesado, lavoura, avaliado em 1:200$000. Bonifácio, cor preta, de 36 anos de idade, solteiro, crioulo, para serviço pesado, lavoura, avaliado em 1:400$000. Adão, cor parda, de 31 anos de idade, solteiro, crioulo, para serviço pesado, lavoura, avaliado em 1:400$000. Caetana, cor preta, de 26 anos de idade, solteira, crioula, para serviço pesado e doméstico (com uma filha ingênua), avaliada em 7000$000’.

A lista incluía ainda Luzia, Romão, João (51 anos, 100$000), Alexandrina, 49 anos, mulher de João (avaliada em 700$000), Martinho (29 anos, sol- teiro, lavrador, 600$000), Vicente, 27 anos, lavrador (1:500$000), Manoel (29 anos, 1:200$000), Theophilo (25 anos, 1:500$000), João (29 anos, 1:500$000). Ofertas variadas.

Transparência absoluta: envelope fechado, abertura em sessão pública, vitória do valor mais elevado, nada de favorecimentos. Alto padrão de baixeza. As comparações dão a medida do valor de um escravo: de 12 a 20 cavalos. Escravos jovens valiam muito mais do que velhos. Mulheres valiam menos, em geral, do que homens. O que pode ter acontecido a João, de 51 anos, para valer sete vezes menos do que sua mulher, Alexandrina, apenas dois anos mais moça? Doença, alcoolismo? Um dado chama a atenção: a oferta de um menino de 15 anos, Joaquim, pelo valor forte de 1:500$000. Teria esse jovem tido sua idade adulterada para não ser considerado um ingênuo? Esse anúncio mancha a biografia que o jornal gostaria de se dar como abolicionista desde a sua criação. O escrivão dava fé: “E eu, João José do Nascimento, escrivão de órfãos, o subscrevi e declaro, em tempos, que estes escravos podem ser vistos no bairro do Varadouro, em poder do inventariante Onofre de Oliveira Ramos…” Nenhuma observação à separação de cônjuges.

Não bastasse esse leilão, A Província de São Paulo trazia logo abaixo, na mesma página, um anúncio de escravo fugido de Itatiba. Melhor, denunciava um fugitivo:

‘Acha-se preso na cadeia desta cidade um preto que diz chamar-se João Crioulo, e pertencer a João Gonçalves de Camargo (vulgo João Bunda), no município de Guaratinguetá, com os sinais seguintes: altura regular, fino de corpo, pouca barba, tem falta de dente em um lado, sinais de castigo nas costas, fisionomia alegre; foi preso no dia 11 do corrente e já fazem três anos que anda fugido; quem for seu dono pode procurar na cadeia desta cidade’.

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