Juremir Machado da Silva

Pauliceia deliciosamente desvairada

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Pauliceia deliciosamente desvairada “O Beco do Batman sintetiza o Brasil atual” | Foto: Arquivo Pessoal
Quase três anos sem ir a São Paulo. De repente, a coragem. Vida que segue. Uma banca de professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Júri altamente qualificado: Clotilde Perez, Mitsuru Yanaze, Pedro Jacobi, Lucia Santaella e este humilde escriba. Aprovado o professor italiano Massimo di Felici, de vasto currículo e bibliografia. Entre seus livros, “Redes e ecologias comunicativas indígenas: as contribuições dos povos originários à Teoria da Comunicação” (Paulus), “Net-ativismo – da ação social para o ato conectivo” e o imperdível “A cidadania digital: a crise da ideia ocidental de democracia e a participação nas redes digitais”.

São Paulo sempre São Paulo: engarrafamentos monstruosos, aquela mistura de brutalidade e pós-tudo, o que se expressa na labiríntica exposição “cem anos modernos”, no Museu da Imagem e do Som, da Semana da Arte Moderna ao rap, de Oswald e Mario de Andrade ao pós-humano, das narrativas da Revolução Constitucionalista de 1932, em mostra vizinha, aquela que São Paulo perdeu, mas comemora, como o Rio Grande do Sul faz com a Farroupilha, a Elza Soares, da ousadia cada vez menos discreta das suas meninas, da “força da grana que ergue e destrói coisas belas” ao rugido noturno dos gols de Yuri Alberto, o novo herói corintiano. Morei em São Paulo. Fugi deixando para trás os móveis e a televisão. Quando volto, digo: maravilhosa, como é bom te ver só de vez em quando. Saber que, com sorte, ainda se para um táxi mais rápido do que em Porto Alegre e tudo é possível quando menos se espera.

O Beco do Batman sintetiza o Brasil atual, ou de sempre, com seus exuberantes grafites: do gado pacífico ao “foda-se” com postulações de violência. Afinal, o que é ser moderno? Um aeroporto com mais gente do que numa final de Libertadores, um trânsito sempre tão cheio que se diz “está fluindo” quando se arrasta, a vertigem da vida num vórtice concreto na poesia do cimento e da loucura neo-humana. O que é o humano? Quem pode saber? Se nunca fomos modernos, como disse o moderno Bruno Latour, teremos sido algum dia humanos? O mais incrível é ler o amor por São Paulo nos olhos daqueles que não temem essa paixão devoradora. Como estar longe do lugar onde tudo acontece, até mesmo a morte dos acontecimentos e de sua mitologia?

Vivi anos em Paris. Morei rapidamente em Berlim. Gosto de comparar essas cidades com São Paulo. Em todas elas, inclusive no Rio de Janeiro, falta alguma coisa em relação à pauliceia. O que mesmo? Essa sensação de que tudo ali é transitório, mortal, envolvente, cruel, sem referência. O mar e os morros organizam o Rio de Janeiro, que pulsa com enleios e doçuras falsas. O rio e os monumentos ordenam Paris numa ilusão polida. A abstração regula Berlim. Nada canaliza São Paulo. Há muito, num ano qualquer, a cidade engoliu a cidade e tudo se misturou num estômago gigantesco, antropofagia nada metafórica de um mundo que se devora com a satisfação de uma fotossíntese autofágica.

Exagero? Todo olhar de passagem sobre São Paulo mantém-se incapaz de perceber a pasmaceira da sua rotina fuliginosa. Ali dormem entediados o morador de rua e o magnata incapaz de contar o seu dinheiro. Quando o avião decola, em Congonhas, eu sempre digo:

– Que bom que não moro aqui. Mas como é bom te rever!

São Paulo e seus degraus do modernismo.

Continua...

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