Juremir Machado da Silva

Quando o agredido é preso por ser negro

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Quando o agredido é preso por ser negro No Rio Branco, policiais detém homem negro que se feriu | Imagem: Reprodução @nietzsche4speed

O Rio Grande do Sul vivenciou um caso paradigmático de racismo em abordagem policial. Chamada para prender um branco agressor, a polícia militar prendeu o negro agredido. Para Muniz Sodré, um dos maiores intelectuais brasileiros, negro, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o racismo é uma “forma social”, um modo concreto de expressão. Em “O fascismo da cor, uma radiografia do racismo nacional” (Vozes), ele discorda de outro intelectual importante, o ministro Sílvio Almeida: o racismo brasileiro seria institucional, não estrutural: “A funcionalidade do racismo no âmbito das instituições e das relações subjetivas independe de uma estrutura, o que torna ainda mais difícil a sua apreensão por mecanismos puramente racionais”. Muniz Sodré admite, porém, que a expressão racismo estrutural “tem um alcance político no discurso antirracista”.

O racismo está entranhado no imaginário brasileiro das instituições. O caso ocorrido no final de semana em Porto Alegre, no bairro Rio Branco, é relevador: envolvidos numa briga, o branco fere o negro com uma faca na altura do pescoço. Moradores presenciaram o fato e se manifestaram sobre o que viram. Os policiais militares foram para cima do homem negro, que conduziram à força para a viatura. O branco teve tempo de ir ao seu apartamento colocar uma camisa. Na volta, foi embarcado no carro policial no banco de trás. No vídeo, gravado por quem estava no local, os policiais são avisados do erro que vão cometer: “Tentaram matar ele e vão prender ele”, diz um homem. “Olha o pescoço dele, onde ele tomou a facada”. Uma mulher grita: “Isso é racismo”. Um homem repete: “Isso é racismo puro”. Como explicar?

As imagens repercutiram imediatamente pelo Brasil. O governador do Estado, Eduardo Leite, determinou uma investigação. Passo a passo, o que se vê: policial que conversa rapidamente com o agressor, homem branco sem camisa, e avança para o homem negro, que tenta argumentar, mas é colocado contra a parede e algemado. O quadro assume a simplicidade do preconceito entranhado: se há agressor e agredido, o agressor só pode ser o negro. Em nenhum momento os policiais aceitam ouvir o que as pessoas lhes dizem. A abordagem tem um ritmo e uma convicção, como se os militares dissessem, “nós sabemos o que estamos fazendo, temos experiência nisso”. A experiência do estereótipo.

Detalhe: foi o homem negro agredido que chamou a polícia. O racismo entranhado se apresenta como uma forma social não racional. Certamente os policiais envolvidos no caso negarão que sejam racistas. Em situação concreta, o imaginário fala por si, vaza, escorre, atua como reservatório de posturas e motor das ações. Há um Brasil profundamente racista que se expressa todos os dias em mil formas sociais que ultrapassam os novos discursos institucionais. No passado não muito distante, negros não eram admitidos nos clubes de brancos em cidades do interior do Rio Grande do Sul. Por serem negros. Era um racismo explícito. Hoje isso felizmente não é mais possível de modo escancarado, estatutário. O racismo, contudo, viceja como uma infiltração que acaba por vir à tona, afetando a leitura social dos acontecimentos cotidianos e chocando quando capturada por câmeras.

Um caso que será usado em exposições sobre racismo no país.

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