Juremir Machado da Silva

Por uma medicina sem pressa

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Por uma medicina sem pressa Foto: Arquivo Pessoal
Olá, leitor: filho do grande cientista político Norberto Bobbio, Marco Bobbio é médico e defensor de uma “medicina sem pressa”. O que significa? Como pode ser praticada. A hora é agora para saber. Avante, pois Por uma medicina sem pressa

Filho de Norberto Bobbio, uma das maiores referências intelectuais do século XX, o cardiologista italiano Marco Bobbio está em Porto Alegre a convite do ex-vereador Marcelo Sgarbossa. Autor de livros importantes, como “O doente imaginado” e “Medicina demais”, ele defende uma “slow medicine”, uma medicina sem pressa e focada exclusivamente no bem do paciente. Nesta entrevista, com participação de Sgarbossa, concedida no “restaurante anarquista” Aurora (Miguel Tostes, 943), Bobbio explicita o que pensa.

– O que é a medicina sem pressa?

Marco Bobbio – É um movimento de opinião que parte da ideia de que a medicina atual é exagerada em muitos dos seus procedimentos e condicionada pelo uso da tecnologia. Ela é governada pela tecnologia e não pelas necessidades dos pacientes. Prevalecem seguidamente os interesses da indústria farmacêutica, dos negócios, havendo conflito entre o que o paciente pode precisar e uma indústria em busca de lucro, que vende equipamentos e remédios. Partindo dessas observações, decidiu-se, entre alguns médicos, cidadãos e pacientes, fundar uma associação para propor outra forma de medicina, mais humana, mais cuidadosa e mais próxima das necessidades dos doentes. Escolheu-se chamar de “slow medicine” porque próximo de Turim surgiu o movimento conhecido como “slow food”, que fala em alimentação boa, limpa (sem agrotóxicos) e a um preço justo. Passamos, em nosso caso, a falar em medicina sóbria, respeitosa e justa.

– O que cada um desses termos representa?

Bobbio – Sóbria, ou seja, que se fará tudo o que for necessário ao paciente, mas sem exagerar. Respeitosa, que deve considerar as exigências, necessidades e expectativas do doente. Justa, por fim, no sentido de que não pode ser uma medicina que dê muito a poucos e nada a muitos.

– O que leva certa medicina a não ser como o senhor defende?

Bobbio – A base é o interesse econômico. Em torno da medicina existe uma indústria farmacêutica e de dispositivos artificiais como próteses e outros elementos altamente sofisticados dessa indústria biotecnológica. Além disso, existem os serviços. Por exemplo, toda a gama de exames conhecidos, como radiografias, ressonâncias, etc. Por fim, os serviços de hospitalização. Quanto mais se acentua um problema, mais produtos são vendidos. A expectativa do paciente acaba por ser usada em favor do mercado. Assim se intensificam os exames, que passam de uma vez por ano para uma vez a cada seis meses e assim por diante. Passa a predominar a ideia de controlar rigorosamente o organismo do paciente. Assim, pode-se dizer que medicina em excesso faz mal. Entra-se num processo obsessivo.

– Essa proposta não acaba por favorecer quem não quer ir ao médico, especialmente homens, que costumam ser mais resistentes aos exames preventivos, com base naquele ditado que diz que quem procura acha?

Bobbio – Sim, esse é um problema real, mas devemos pensar numa medicina sóbria, que faça as coisas necessárias, mas não exagere. Uma medicina excessiva recorre a procedimentos inúteis. Outra coisa é a falta de uma cultura da prevenção. Há quem não vá ao médico por não estar habituado ou por ter medo. Há pessoas doentes por obesidade. E há pessoas doentes por falta de comida, desnutridas. Precisamos de equilíbrio tanto no que se refere à alimentação quanto no que diz respeito aos tratamentos médicos.

– O doente é imaginado ou a doença é imaginária?

Bobbio – É como a indústria imagina o cliente. Um slogan um tanto paradoxal é o seguinte: se começamos a tratar as pessoas sãs, lucramos com isso. Há menos pessoas doentes do que sadias. O mecanismo da medicina mercantil consiste em aumentar o número de pessoas que possam ser consideradas doentes. Inventa-se a doença. Todos os distúrbios viram doenças. A timidez pode virar uma doença. Todos somos um pouco tímidos. Mas se a timidez passa a ser vista como doença, é preciso tratá-la com medicamentos. Há uma bela imagem de uma jovem com esta frase: se há pele, há risco de tumor. Basta mexer no índice visto como adequado de colesterol para que um enorme mercado se abra. Se passa de 160 para 140 o nível de preocupação a cuidar, trinta milhões de pessoas devem tomar remédio imediatamente. As pessoas ficam aterrorizadas e querem mais remédios e mais cuidados o tempo todo.

– Recusar essa lógica dominante pode ser visto como ignorância.

Bobbio – Está na moda controlar a tireoide. O número de tumores aumentou, o número de intervenções cresceu. O número de mortes continua o mesmo. Os tumores de tireoide são raríssimos. O paradoxo da prevenção é que cria necessidades de controle que talvez não precisassem existir. O paradoxo consiste em levar o paciente a dizer “ainda bem que soube a tempo”. Assim, gera-se lucro e satisfação quando possivelmente nada disso fosse preciso.

– Homens estão mais atentos aos exageros da medicina com interesse comercial ou são apenas mais resistentes aos cuidados preventivos do que mulheres?

Bobbio – Criou-se uma cultura ao longo do tempo baseada em quanto mais se vai ao médico, melhor, que fazer novos exames é sempre melhor e que a nova medicina é melhor do que a antiga, que prevenir significa fazer exames de sangue todo o tempo. Isso corresponde plenamente ao interesse do mercado. Cada vez mais, a população pensa que tomar muitos medicamentos e fazer muitos exames de controle faz bem. Cerca de 40% das radiografias são inúteis.

– Como os seus colegas médicos italianos reagem às suas ideias?

Bobbio – São muitos os médicos que não suportam mais esse tipo de medicina dominante. Assim, aderiram ao nosso movimento. A maioria, claro, continua a atuar sob a pressão do mercado. Não somos criticados. Há tolerância.

– Entrevistei há algum tempo um especialista brasileiro, que trabalha nos Estados Unidos, sobre riscos que se corre em hospitalizações. É importante?

Bobbio – Sim. Quantos pacientes morreram no último ano em cirurgias? Os dados quase sempre são subestimados. Fala-se em 2% ou até 5%. Quando são examinados os registros operatórios, pode ser dez por cento. É outro campo em que se precisa melhorar em vários níveis.

– Não posso deixar de perguntar, mudando totalmente de assunto, como o seu pai, Norberto Bobbio, veria a Itália de hoje e o crescimento da extrema direita na Europa?

Bobbio – Não sei. Meu pai sempre foi uma pessoa muito realista. Os erros da esquerda permitiram o avanço da direita. No Brasil, os erros de Lula e Dilma abriram espaço para a eleição de Jair Bolsonaro. Na Itália, as falhas da esquerda para construir uma alternativa abriram caminho para a direita ganhar, inclusive com todos dos mais pobres.

– Como está a gestão da saúde na Itália?

Bobbio – Temos um sistema nacional de saúde, criado em 1978, muito eficiente. Todos os italianos podem ser tratados gratuitamente. Não se paga nada em hospitais, nem mesmo num transplante de coração. Mas, ao longo do tempo, o sistema tornou-se muito custoso. Nos últimos anos, então, passou-se a diminuir o número de funcionários do sistema e a fazer terceirizações.

Marcelo Sgarbossa – Medicina demais não pode parecer um olhar arrogante europeu quando, num país como o Brasil, há medicina de menos, ou seja, dificuldade da população de acesso a cuidados médicos?

Bobbio – Precisamos da medicina necessária, nem demais nem de menos.

Sgarbossa – Quando dizes que teu pai era muito realista, o que significa?

Bobbio – Não era ideológico. Tentava captar o sentido das coisas.

Sgarbossa – Não é à toa que escreveu “Nem direita nem esquerda”.

Bobbio – Exatamente. Na política, como na medicina, é preciso fazer o justo, o necessário. Se um paciente tem uma parada cardíaca, cabe fazer de tudo para reanimá-lo, para salvar-lhe a vida. Se, porém, um homem de 98 anos, com Alzheimer, vivendo depois de cinco anos numa clínica, chega com parada cardíaca, por que não o deixar em paz, deixá-lo morrer em paz?

Continua...

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