Juremir Machado da Silva

Tudo será como antes

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Tudo será como antes ONG Rio de Paz estende 600 lenços brancos em frente ao Congresso Nacional como homenagem às vítimas da covid-19 (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

A frase mais tola que alguém pode dizer é nada será como antes. Faz parte da ejaculação precoce humana achar que certas coisas enterrarão o passado. Em 2001, depois dos atentados das torres gêmeas, a mídia não parou de garantir que o mundo nunca mais seria o mesmo. Errou. O mundo continua igualzinho: egoísta, cruel, salpicado, aqui ou ali, de gestos de grandeza e generosidade. De resto, é cada um por si, Deus por todos, salve-se quem puder e tomara que dê certo. A Europa nunca mais seria a mesma depois das grandes guerras e não cairia nas velhas ciladas nacionalistas e imperialistas. Tudo está aí outra vez.

A pandemia do coronavírus teria como consequência uma mudança radical em nossas mentalidades. Já era. Nem terminou e já está esquecida por muitos. Ao longo do cortejo de mortos golpes continuaram a ser dados, rasteiras foram aplicadas, mentiras foram contadas e vantagens foram obtidas indevidamente a peso de ouro ou de espertezas. A memória negativa passa rápido. Jair Bolsonaro parecia derrotado eleitoralmente pelas tantas asneiras que disse enquanto brasileiros morriam de covid-19. Precisa ser muito louco para fazer todos os comentários que o capitão engatou nas suas lives e no cercadinho do Alvorada. O doido foi contra a vacina, que está nos salvando e permitindo uma volta à vida quase normal. Pois não é que, apesar do negacionismo do presidente, mal a coisa melhorou e ele já sobe nas pesquisas. Foi parar de criticar as vacinas para melhorar seu escore.

O povo já esqueceu? Parte está encantada com os 400 reais do Auxílio Brasil. Outra parte até se lembra bem dos disparates do presidente, mas não se importa. Cínica, quer que ele fique no cargo e pronto. Azar do goleiro se ele terminar de arrasar o país com mais um mandato. Nesse tipo de jogo quem ganha não se importa com a derrota dos outros. O cara que sonegava impostos continua fazendo isso, aquele que furava fila tenta aperfeiçoar o seu método, os golpes virtuais estão cada vez mais ousados, a sacanagem corre solta, o Centrão dá as cartas e joga de mão, o fundo eleitoral engordou como nunca, uns continuam comendo o fígado dos outros e foda-se quem acha isso abominável.

Avante, Brasil, para trás. Aliás, esse Centrão, hein, que máquina de engolir presidentes e recursos públicos. Será arte? Mais de 600 mil brasileiros morreram, muitos ficaram com sequelas, familiares ainda choram seus entes queridos, mas nada mudou no geral. Não ficamos moralmente melhores nem estamos dispostos a viver de outro modo. A memória da dor já evaporou. É ano eleitoral. O jogo será jogado como sempre. Na Europa, velha Europa sem remendo, inventou-se uma guerra no meio da pandemia. Mudar um imaginário leva séculos. O ser humano é duro na queda. Cultiva os seus defeitos com perseverança. A dor não o ensina gemer, salvo enquanto está assustado. Mal sente o perigo diminuir, bota a cabeça para fora e segue na velha balada.

Sou cético? Amargo? Absolutamente realista.

Prove, leitor, o contrário.

*

Um grande lamento pela morte de Lygia Fagundes Telles, imortal da ABL, autora de uma obra-prima, As meninas. A escritora tinha 98 anos. Era uma mulher discreta. Houve uma época em que ler a obra de Lygia era sinônimo de bom gosto e de sensibilidade refinada.

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