Juremir Machado da Silva

Vida de escravo em 1822

Change Size Text
Vida de escravo em 1822 Imagem: Biblioteca Nacional

Com este fragmento, em tempos de escravidão na serra gaúcha, encerro minha série sobre os relatos dessa viajante que tão bem retratou a vida no Brasil de D. Pedro I.

Diário de viagem de Maria Graham

Domingo, 3 (de março) – Saí antes do almoço em companhia de um carpinteiro negro como guia. Este homem, de alguma instrução, aprendeu seu ofício de modo a ser não só um bom carpinteiro, mas também um razoável marceneiro. Em outros assuntos revela uma rapidez de percepção que não dá fundamento à pretendida inferioridade da inteligência negra. Fiquei muito grata às observações que ele fez sobre muitas coisas que achei novidades, e a perfeita compreensão que parecia ter de todos os trabalhos de campo. Depois do almoço, assisti à revista semanal de todos os negros da fazenda. Distribuíram-se camisas e calças limpas aos homens; blusas e saias às mulheres, de algodão branco muito grosso. Cada um, à medida que entrava, beijava a mão do Sr. P. e curvava-se diante dele dizendo: “A bênção, meu pai” ou “Louvados sejam os nomes de Jesus e Maria” e recebia em resposta respectivamente: “Deus te abençoe” ou “Louvados sejam”. Este é o costume nas velhas fazendas: é repetido de manhã e à noite e parece estabelecer uma espécie de parentesco entre o senhor e o escravo. Deve diminuir os males da escravidão quanto a um, a tirania do patrão quanto a outro, reconhecer assim, acima de todos, o Senhor, do qual ambos dependem.

À medida que cada escravo era passado em revista, faziam-se algumas perguntas relativas a ele próprio, sua família, se ele a tinha, e seu trabalho. Cada um recebia uma quantidade de rapé ou tabaco, segundo a preferência. O Sr. P. é uma das poucas pessoas que encontrei a conversar no meio dos escravos, e que parece ter feito deles objeto de atenção racional e humana. Contou-me que os negros crioulos e mulatos são muito superiores em diligência aos portugueses e brasileiros, os quais, por causas não difíceis de serem imaginadas, são, pela maior parte, indolentes e ignorantes. Os negros e mulatos têm forres motivos para esforçar-se em rodos os sentidos e serem, por consequência, bem-sucedidos naquilo que empreendem. São os melhores artífices e artistas. A orquestra da ópera é composta, no mínimo, de um terço de mulatos. Toda pintura decorativa, obras de talhe e embutidos são feitos por eles; enfim, excelem em todas as artes de engenho mecânico.

À tarde acompanhei o Sr. P. para ver os negros receberem a ração diária de comida. Consistia em farinha, feijão e carne seca, uma quantidade fixa de cada coisa por pessoa. Um homem pediu duas rações em vista da ausência do vizinho, cuja mulher pedira que lhe fosse enviada sua quota para estar preparada quando ele voltasse. Algumas perguntas feiras pelo Sr. P. acerca dessa pessoa, induziram-me a perguntar sua história. Parece que é ele um mulato remador, o escravo de mais confiança da fazenda, e rico, porque foi tão industrioso que conseguiu uma boa porção de propriedade privada, além de cumprir seus deveres para com o senhor. Na sua mocidade, e ainda não é velho, havia-se ligado a uma negra crioula, nascida, como ele, na fazenda; mas não se casou com ela senão quando obteve bastante dinheiro para compra-la, de modo que seus filhos, se os tivesse, nascessem livres. Desde esse tempo enriqueceu bastante para comprar a sua própria liberdade, mesmo pelo alto preço que um escravo como ele deve alcançar, mas o seu senhor não lhe quer vender a alforria, por serem os seus serviços valiosos demais para dispensá-los, apesar de sua promessa de ficar trabalhando na fazenda. Infelizmente, esta gente não tem filhos. Portanto, pela morte deles, a propriedade, agora considerável, reverterá ao senhor. Se tivessem filhos, como a mulher é livre, eles poderiam herdar a propriedade materna e não há nada que possa impedir ao pai transferir à esposa tudo o que possui. Gostaria de ter o talento de escrever uma novela a respeito dessa história de escravos; mas os meus escritos, como os meus desenhos, não conseguem ir além da descrição da natureza e permito que melhores artistas possam aproveitar o assunto.

RELACIONADAS

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.