Juremir Machado da Silva

Machado de Assis, cronista das classes ociosas (3)

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Machado de Assis, cronista das classes ociosas (3) Imagem: Biblioteca Nacional e Reprodução

Lucia Miguel Pereira não tinha dúvidas: Machado de Assis procurava fugir do seu passado. A prova disso estaria em ter abandonado a madrasta, Maria Inês, a “mulata” que o criara com todo o carinho e atenção: “A madrasta, tão boa e tão humilde, era um testemunho vivo, insofismável, desse passado à que Joaquim Maria queria fugir… Era a prisão á condição modesta… E na alma do jovem escritor um conflito se há de ter travado, um doloroso drama íntimo, entre a gratidão e a ambição… Deixou-se afinal levar pela segunda, mas não sem lutas”.

Para ela, Machado de Assis talvez até ajudasse a madrasta a viver, indo, vez ou outra, a São Cristóvão, mas não deixando os amigos “sequer suspeitar dos motivos da viagem”, pois, pelos seus triunfos presentes, gostaria de enterrar o passado humilde “como um cadáver”. O momento da rejeição teria sido o do casamento: “Estava definitivamente aceito na burguesia, cavaleiro, desde 67, da Ordem da Rosa, casado com uma senhora fina, de boa educação, morando em sua casa, tendo os seus moveis, os seus livros, vivendo no meio que era o do seu espírito. E, então, cortou violentamente as amarras com o passado. Temendo talvez pôr Carolina em contato com Maria Inês, não querendo, ele próprio, ter constantemente diante dos olhos esse espectro de uma infância penosa, abandonou a pobre mulata”.

Por fim, “teria ido discretamente ao velório da madrasta levando junto o escritor Coelho Neto, a quem teria confessado: “Era minha mãe”. A biógrafa escorava-se, porém, em teses de um determinismo constrangedor. O leitor encontrará os adjetivos adequados para uma passagem como esta sobre a admiração do biografado por Quintino Bocaiúva e ar um tanto blasé”: “Esse ar distante, esse temperamento aristocrata enquadravam-se inteiramente no ideal de Machado, que, consciente ou inconscientemente, lutava contra os impulsos nevropatas [sic] e os espevitamentos dos mestiços – dois perigos que o ameaçavam”.

Para Lucia Miguel Pereira, Machado de Assis só não se acomodou totalmente por ser movido por um vulcão interior, o do artista. Mas, ganhando quase como um desembargador, procuraria não se meter em confusão: “É de 31 de Dezembro de 73 o decreto de nomeação, e a 6 de Janeiro de 74 deixa o lugar do Diário Oficial. O sossego material estava assegurado, entrava para um cargo estável, e de acesso; ganhava então Machado de Assis 4:000$000 anuais, o que representava bons vencimentos para a época”. A situação ainda melhoraria: “Assim na literatura, assim na Secretaria, onde se revelou logo funcionário exemplar e de tal modo se distinguiu, que, ainda não decorridos inteiramente três anos da sua entrada, já seria, por decreto da Princesa Imperial, datado de 7 de Dezembro de 1876, promovido a chefe de seção, com 5:400$000 anuais, quase os vencimentos dos desembargadores, que, nos últimos anos do Império, recebiam 6:000$000”.

Em 1889, ao alcançar o último de grau da carreira de funcionário, ganhava “oito contos anuais”, que representavam “para esse casal sem filhos quase a riqueza”. No auge, receberia também direitos autorais (seiscentos mil réis pela primeira edição de mil exemplares de Quincas Borba) e remuneração adequada por suas colaborações em jornais. Na Gazeta de Notícias, em 1893, ganhava 150 mil réis mensais. A partir de 1899, ganharia da Garnier um conto e quinhentos por livro de prosa

Lucia Miguel Pereira dá um exemplo dessa atitude possivelmente estratégica: “Depois do Diário é que mudou fazendo-se timorato e prudente ao ponto de, em 1884, instado por Ferreira de Araújo para colaborar no numero da Gazeta dedicado á libertação dos escravos da província do Ceará, só haver conseguido produzir esta frase minguada e chocha: “O Ceará é uma estrela; é mister que o Brasil seja um sol”.

Funcionário, procuraria não opinar sobre assunto que ferissem os interesses do governo, adotando uma “prudência burocrática”, primeiro “fazendo liberalismo sem ser liberal”, depois “conformista sem ser conformado”. Um camaleão discreto. Em nome da arte?

Resta uma hipótese radical, a contrapelo, como uma espada na manga: e se Machado de Assis não se envergonhava dos seus, da sua cor, da sua origem, mas do país em que vivia? E se, em função disso, soube se proteger numa formalidade gélida para poder dissecar as classes brancas ociosas? E se, na solidão da sua rotina, repetisse que aquela sociedade cruel e egoísta não aceitaria como igual um negro gago e epilético?

A mesma Lucia Miguel Pereira veria na famosa cena do moleque Prudêncio, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, a “crítica da organização servil e familiar de então” e a mostra do “mal que fez a escravidão a brancos e negros”. O escritor preferia andar em diagonal. Não era militante, não queria ser, falava por meio da arte. Já consagrado, teria um desentendimento com um subordinado, que o chamaria de “negro escravocrata”. Não era escravocrata. Era sinuoso, precavido, cioso de preservar as suas conquistas. A biógrafa submeteu o biografado às teses de Alfredo Adler – que trabalhou com Sigmund Freud e dele se afastou –, para quem cada indivíduo se organiza em termos de suas expectativas para o futuro, com vistas a um sentimento de completude e de estabilidade. Machado de Assis seria um neurótico em busca de um estilo de vida tranquilizador.

Cada época com seus teóricos. Cada um com suas referências. Sílvio Romero, despeitado por ter sido criticado por Machado de Assis, reagiu com vinte anos de atraso, disparando comentários que erraram o alvo. Apostou no sergipano Tobias Barreto contra o carioca e perdeu feio. Poderá ter tido razão em um ponto: “O culto da arte sufocou-lhe n’alma qualquer paixão deprimente, qualquer partidarismo incômodo e perturbador”. Para Romero isso era grave, pois acreditava ser importante não só “refletir a sociedade”, mas “agir sobre ela”.

Romero confessaria não gostar de ironia (“um insulto rebuscado”), nem de humor (“galhofa do triste”) e menos ainda de pessimismo (“lacuna da generosidade”). Ele considerava seres “completamente desequilibrados” Baudelaire, Poe e, “em parte”, Flaubert; e “o próprio Schopenhauer”. Via uma “vaidade de mestiçados levianos” da parte dos brasileiros imaginar que pertenciam de fato às “raças arianas”. Romero seria triturado sem a menor comiseração por um pseudônimo, Labieno, atrás do qual se protegia Lafayette Rodrigues Pereira, em Vindicae, o Sr. Sylvio Romero, crítico e philosopho (1899). O talento de Machado de Assis fazia defensores.

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