Juremir Machado da Silva

Nobel pedregoso, censura no Brasil, estupro culposo e corporativismo reparativo

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Nobel pedregoso, censura no Brasil, estupro culposo e corporativismo reparativo Jon Fosse, vencedor do Nobel de Literatura 2023 | Foto: Tom A. Kolstad

Machado de Assis apresenta assim o “estilo asmático ou antitético” em classificação antológica: “O cão ia. A lata saltava como os guizos do arlequim. De caminho envolveu-se nas pernas de um homem. O homem parou; o cão parou: pararam diante um do outro. Contemplação única! Homo, canis. Um parecia dizer: — Liberta-me! O outro parecia dizer: — Afasta-te! Após alguns instantes, recuaram ambos; o quadrúpede deslaçou-se do bípede. Canis levou a sua lata; homo levou a sua vergonha. Divisão equitativa. A vergonha é a lata ao rabo do caráter”. É pedregoso. Chuta-se um seixo a cada linha. Se o leitor tiver uma distração, cai no meio de uma frase.

Jon Fosse, norueguês ganhador do Nobel da literatura de 2023, pratica o estilo asmático na potência máxima: “Por que está fazendo aquilo?, por que ele fica lá com tanta frequência, quando não há nada para se ver?, ela pensa, ao menos a primavera chegasse agora, ela pensa, com luz, com dias quentes, com florzinhas no chão, com árvores cheias de botões, e também folhas, por que aquela escuridão, aquela escuridão que agora está sempre lá, não há como suportar aquilo, ela pensa, e logo ela precisa dizer alguma coisa para ele, ela pensa, e de repente é como se alguma coisa não fosse mais como era, ela pensa…”

O trecho acima vem de É a Ales, que a informada Cia das Letras, pertencente à Bertelsmann, multinacional do mundo do livro, calhou de lançar bem no momento em que o escritor recebia a maior distinção literária do planeta. São páginas de parágrafos intermináveis. Diz-se que Fosse inventou um estilo muito próprio de escrever. Sem dúvida, simplificou o chamado verbo “dicendi”, que tanto exige tempo de artistas:

“O que você está pensando, diz Signe.

Nada em particular, diz Asle

Sei, diz Signe.

Eu vou, diz Asle.

Enfim, eu, ele diz.

E ele fica parado olhando para ela.

Eu, ele diz.”

Quanta economia! Em meio a tanta parcimônia discursiva, há relâmpagos, clarões, estridências, iluminações. Terminei a leitura com os pés machucados de tanto chutar pedregulhos, driblar “ele pensa”, “ela pensa”, “ele diz”, “ela diz” e outras repetições estéticas inovadoras. Aí, o leitor é que diz: “A Academia Sueca não viu isso?” Viu. E gostou. Eu é que sou atrasado, adepto de futebol ofensivo, inimigo de retranca e de texto “antitético”. Jon Fosse, no Brasil, ganharia todos os prêmios, ainda mais publicando pela Bertelsmann. Que mundo! Até para imprimir livros precisa de multinacional. Bem, até para pegar táxi.

E assim li Jon Fosse. Não foi tarefa fácil. Cento e poucas páginas em dez sentadas. Terminei exausto. Precisei de um Rivotril. Fiquei horas meio fora de sintonia. Olhava o vazio e via “ele pensa”, “ela pensa”.

É dura a vida de um leitor profissional. Fiquei orgulhoso de mim. Não desisto. Faço o dever de casa. Não deixo leitura pelo caminho.

O Nobel ia. A glória saltava como os guizos da mídia.

Tenho lido, ele diz.

*

A censura anda na moda no Brasil. Veículos de comunicação censuram todos os dias. Chamam censura de linha editorial. Em Santa Catarina, a censura pegou uma lista de livros de terror e distopia, inclusive o famoso Laranja mecânica. A censura mais assustadora vem da justiça também de Santa Catarina. A jornalista Shirlei Alves, do site The Intercept, foi condenada a um ano de prisão em regime aberto e a R$ 400 mil de multa por uma ironia no caso de estupro da influenciadora Mari Ferrer. A repórter mostrou evidências de que o crime foi cometido. Mas o réu foi absolvido. O juiz, porém, acabou advertido pelo Conselho Nacional de Justiça.

Para o promotor Thiago Carriço o acusado não tinha como saber que a vítima não estava em condições de consentir a relação. Portanto não haveria intenção de estuprar. De onde a conclusão da jornalista: estupro culposo. O caso, de tão escandaloso e abjeto, gerou a Lei Mari Ferrer, que tipifica o crime de violência institucional.

“Art. 15-A. Submeter a vítima de infração penal ou a testemunha de crimes violentos a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, que a leve a reviver, sem estrita necessidade:

I – a situação de violência; ou
II – outras situações potencialmente geradoras de sofrimento ou estigmatização:

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.
§ 1º Se o agente público permitir que terceiro intimide a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena aumentada de 2/3 (dois terços).

§ 2º Se o agente público intimidar a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena em dobro.”

A jornalista Shirlei Alves foi condenada em primeira instância por difamação. Na sentença, a juíza sustenta que o juiz “teria acatado o pedido de absolvição do acusado, concordando com a tese apresentada pelo promotor de justiça ‘estupro sem intenção'”. Mais: a jornalista teria “o intuito de propagar, difundir a sua matéria, posto que com tal título e afirmação [“Caso Mariana Ferrer e o inédito ‘Estupro culposo’”], totalmente fora do âmbito jurídico, conseguiria chamar mais atenção e gerar mais acessos ao texto”.

Do estupro culposo ao corporativismo reparativo.

*

Achei o livro de Jon Fosse muito chato. Jamais pediria que fosse retirado das bibliotecas por isso. Não compraria para bibliotecas públicas a maioria dos livros de terror da lista censurada em Santa Catarina. Dado que foram adquridos, não os censuraria de modo algum.

*

Mais sobre o caso da condenação da jornalista aqui.

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