Juremir Machado da Silva

Polemista na periferia do mercado das ideias

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Polemista na periferia do mercado das ideias Foto: Ricardo Duarte/SCI

Desde quando comecei em jornalismo que me chamam de polêmico. Eu preferia ser considerado polemista. Um grande do jornalismo local me chamou de opiniático quando eu assinei minhas primeiras matérias. Ele mesmo fazia opinião, mas considerava que as minhas eram sem fundamento. Afinal, eu era jovem. Não, não foi o Paulo Sant’Ana. O etarismo sempre me perseguiu. Metade da vida, fui jovem demais. Agora, sou velho. A meu ver, precocemente. Espero ser velho por muito tempo. Não condeno, contudo, essa estrela do nosso firmamento com quem, de resto, tive bom relacionamento. Sempre andei sozinho. Assumo as polêmicas que criei. Nalgumas, fui duro demais, fruto da juventude ou da minha incapacidade de percepção correta de certas coisas. Luis Fernando Verissimo não merecia todo o meu fel. Vítor Ramil, que cheguei a criticar, é o mais talentoso músico gaúcho. “Ilha das flores”, de Jorge Furtado, tem lugar na história dos curtas.

Em várias polêmicas, disse três ou quatro frases pertinentes e cunhei até algumas tiradas divertidas. Não faço parte de nenhuma tribo, nunca tive partido, sou colorado, mas tive meus anos de gremista, acho que Lula erra ao comparar o massacre em Gaza com o Holocausto, considero, no entanto, que Israel não pode continuar a matar crianças e mulheres em Gaza. Enfim, como todo mundo, erro, acerto, me contradigo, digo, quando perco, vida que segue.  Lamento, porém, quando, num arroubo, no calor das tempestades, ou simplesmente por uma boa frase, digo coisas que ferem pessoas e produzem mágoas. Em algum momento, disse que programa de debates esportivos é conversa de bar. Não me lembro o contexto. Magoei jornalistas esportivos.

O que eu posso ter querido dizer? Talvez que algumas emissoras apostam nesse modelo, opondo jornalistas torcedores para recriar a atmosfera de paixão. Talvez que torcedores discutindo num bar também podem saber muito de futebol. Talvez que, no calor das discussões, como num bar, a vontade de ganhar pode prevalecer sobre a informação e a análise. Talvez que, como num bar, acertamos, erramos, teimamos, exageramos, damos valor demais às nossas teses, que, volta e meia, são confirmadas por algum resultado. Mas, obviamente, debates esportivos qualificados não são meras conversas de bar. Há profissionais dedicados, com muita informação e poder de análise. Participo desse tipo de programa há quase trinta anos. Atualmente vou no Preliminar, do Luís Carlos Reche, no seu canal no YouTube.

Sou aberto a novidades e refratário a modismos. Talvez tenha querido ironizar a ideia de que o futebol pode ser analisado cientificamente, algo que, de fato, não acredito. Mas essa perspectiva não se restringe ao futebol, passa pela política e pela vida social. Não ser científico, num sentido positivista, não quer dizer sem rigor, qualidade, capacidade de demonstração, profundidade analítica e profundidade argumentativa. Enfim, a todos os que magoei com essa tirada, minhas desculpas. Não prometo jamais bobear de novo. Longe de mim, porém, diminuir uma atividade que admiro e pratico modestamente.

Sugiro uma leitura: “A falação esportiva”, de Umberto Eco, textos de um livro genial: “Viagem na irrealidade cotidiana”. Se não for demais, um pouco de senso de humor também vai bem. Um debate esportivo é um jogo de argumentação. Isso provoca alguma vertigem.

*

Eco e a Copa

Umberto Eco foi grande. Falava de tudo. Mas não gostava de futebol. Ele não era o intelectual indiferente à cultura de massa. Ao contrário, consumia de tudo, de histórias em quadrinhos a romances policiais. O futebol, porém, era-lhe estranho. Em 1969 e em 1978, durante a Copa da Mundo da Argentina, ele se meteu no assunto. Na primeira incursão, produziu um texto intitulado “A falação esportiva”. Nele, o futuro best-seller com “O nome da rosa” dizia que nenhum movimento estudantil ou outro seria capaz de invadir um estádio de futebol num domingo. A execração seria total. Não haveria apoio algum.

O semiólogo compreendeu a grande revolução: o futebol como esporte não mais para ser praticado, mas para ser visto. Mais do que isso, para ser objeto de falação: “Se o esporte é praticado para a saúde, como comer comida, o esporte visto é a mistificação da saúde. Quando vejo os outros jogarem, não estou fazendo nada de saudável, e apenas vagamente desfruto a sanidade alheia (o que já seria mero exercício de voyeurismo, como quem olha os outros fazendo amor). Para o teórico da “obra a aberta”, o futebol tornara-se “um discurso sobre a imprensa esportiva” ou um discurso da imprensa esportiva. O seu objetivo não era o gol, mas fazer falar do jogo e do gol. Daí a importância da polêmica. O VAR parece ser a nova etapa da falação.

Na falação, segundo Eco, “neutralizam-se as energias intelectuais”. Todo mundo é expert e todo mundo pode neutralizar o outro como despreparado. A frase mais comum da falação esportiva é “você não entende”, que significa “como se atreve a pensar diferente de mim”. Na falação, algo fala através de nós: aquilo que somos. Umberto Eco tocou no ponto mais sensível: fala-se para fazer contato, estar em contato, participar de algo. O problema é que essa lógica tribal empurra cada vez mais para a divisão. Uma tribo não quer mais falar com a outra. Falar por falar para fazer o tempo passar.

Em “O mundial e suas pompas”, Umberto Eco explica o seu desinteresse pelo futebol: nasceu ruim de bola. Mas isso não queria dizer que execrasse a paixão pelo futebol. Considerava-a providencial para canalizar as energias reprimidas das massas: “Sou favorável à paixão pelo futebol como sou favorável aos rachas, às competições de motoqueiros à beira do abismo, ao paraquedismo desvairado, ao alpinismo místico, à travessia dos oceanos em barcos de borracha, à roleta russa e ao uso da droga”. Era possível escrever assim. Eco nunca foi politicamente correto. Podia ironizar a cadeia esportiva.

Falar de esporte, segundo ele, naquele momento era uma maneira de não falar de política. Hoje, no Brasil, parte da crítica feita a Neymar é uma falação política contra a Rede Globo, de quem ele seria protegido, apontada como responsável pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff. É só ler os textos dos gurus midiáticos de esquerda para ter a prova. Em tempos de terrorismo e de Brigadas Vermelhas, Eco especulava: “Existe a possibilidade da luta armada no domingo de campeonato? Talvez fosse preciso fazer menos discussões políticas e mais sociologia circense”. Preconceito de intelectual? Pura falação?

Para o italiano Umberto Eco esporte era uma atividade sem fins lucrativos na qual cada um empenhava diretamente o seu corpo. A Copa do Mundo faz parte do espetáculo esportivo. Nele, os jogadores “são profissionais submetidos a tensões não diferentes das de um operário da linha de montagem (afora algumas insignificantes diferenças salariais)”. Atenção, ironia! Já os espectadores se portariam “como fileiras de sexomaníacos que vão regularmente espreitar (não uma vez na vida em Amsterdã, mas todos os domingos, e em lugar de fazer) casais que fazem o amor ou que fingem fazê-lo (ou como as crianças paupérrimas de minha infância a quem se prometia levar para ver os ricos tomarem sorvete”. O futebol seria a política por outros meios.

É claro que Umberto Eco nada entendia de futebol. Talvez por isso tenha tocado no ponto mais importante a ser considerado: o futebol é uma falação interminável. O que se diz por meio do comentário do jogo? Tudo. Nas críticas a Neymar, por exemplo, transparecem visões de mundo que vão da exigência do homem que não pode chorar a um comportamento ilibado que mesmos os críticos dificilmente praticam, passando por uma exploração política escancarada que o transforma em objeto de um ressentimento incontido. Por trás da falação esportiva reverbera uma falação moral, política, psicológica, ideológica. Se luto a cada dia por muito pouco, como posso tolerar que aquele que ganha muito caia em campo e reclame?

Até que ponto Umberto Eco tinha razão? Até que ponto suas intuições se confirmaram? A falação agora tem um amplificador: as redes sociais. Nelas, contudo, não se fala para ativar a chamada função fática, o contato, mas para entrar em guerra com esse outro que diverge. A diferença decepciona. Para o jornalismo a decepção provocada é um selo de qualidade. Ela se chama independência. Umberto Eco deitou falação sobre o futebol. Foi um ato político explícito.

(texto publicado em 2018)

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