Juremir Machado da Silva

Porto Alegre sitiada

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Porto Alegre sitiada Vista da Prefeitura de Porto Alegre na terça-feira | Fotos de Juremir Machado da Silva e Ana Claudia Rodrigues

Porto-alegrense adotivo e orgulhoso de nossas belezas e até de alguns dos nossos defeitos, eu nunca pensei que um dia eu diria com a maior sinceridade, sem qualquer brincadeira ou doce ironia, a um jovem pós-doutorando francês ou a qualquer pessoa: é hora de sair.

Mas foi o que falei para Arthur quando ele me questionou sobre essa possibilidade.

Sair de Porto Alegre antes de ficar sem água, luz, supermercado, restaurante e sensação de segurança. Eles alugaram um carro e subiram para Florianópolis, enfrentando engarrafamento na estrada, depois que se soube que o aeroporto ficará fechado até 30 de maio. Matthijs tem um concurso na França. Viajaria na sexta-feira. No começo, eu dizia em tom seguro de quem já viu muita coisa: vai passar logo.

Eu havia visto o filme Guerra Civil, com Wagner Moura, e talvez estivesse com a cabeça cheia de fantasia. Então saímos pelo Bom Fim no começo da noite de segunda-feira. Metade do bairro estava no escuro. As pessoas se agrupavam para seguir. Uma moça pediu para ir junto com a gente. Havia medo no ar.

De manhã fomos ao Centro Histórico. Eu tinha na cabeça fotografias da cheia de 1941. No celular, imagens da Cidade Baixa e do Menino Deus, onde se podia ver um jacaré. Mas eu só acreditava nos meus olhos.

Na subida para a Salgado Filho uma placa de rua no chão, com o nome do prefeito Loureiro da Silva, anunciava o que qualquer um ainda pode ver: Porto Alegre sitiada pelas águas, sem rodoviária, sem aeroporto, mercadinhos funcionando sem luz, gente apinhada na frente de uma farmácia para captar sinal de internet e carregar celular. Muita gente andando ao léu, com nítido ar de perplexidade.

Chegamos à Esquina Democrática. Para frente se vê o Mercado Público cercado pela água.

Mercado Público de Porto Alegre

Para baixo, a Rua da Praia, de tantas explicações sobre a falta de praia, de tantas histórias, páginas viradas, vivendo suas decadência lenta, tomada pela água até quase a rua Uruguai, de onde se pode ver a velha Prefeitura, com seu belo prédio, como uma ilha pairando sobre a água suja.

Rua da Praia

Lixo, aliás, é o que não falta boiando sobre o avanço do rio, que não é lago nada, embora o setor imobiliário goste disso por ser permitido construir quase dentro de um lago, mas não de rio.

Ao fundo, a Prefeitura de Porto Alegre

Uma pergunta grita enquanto sirenes tocam: alguém vai ainda querer comprar apartamento em prédio de luxo em condomínio dentro do rio, perto da fechada rodoviária?

Subimos para a Riachuelo.

A cada esquina, olhando para baixo, o triste espetáculo da enchente.

Descer a Caldas Júnior mexe com o imaginário.

Descida da Caldas Júnior

Um barquinho inflável navega na frente do prédio do centenário Correio do Povo. Uma senhora me pede para protestar junto às autoridades, quer mais helicópteros de outros estados ajudando o Rio Grande do Sul. O Guaíba retomou espaços perdidos ao longo do tempo.

Na frente do Correio do Povo

Nada se aprendeu com os temporais de setembro de 2023. A imprevidência garantiu a tragédia. Investimento zero contra enchentes. Até o centro de comando das operações ficava numa área das mais alagadiças.

As imagens da água vazando por baixo de um dos portões de proteção é o retrato melancólico da falta de manutenção. O ano de 1941 parecia tão longe. O de 1967 também. Até setembro de 2023 parecia distante,

Fomos até o Gasômetro pela Riachuelo. Ali o rio engoliu seu passado. Um flagelado de Eldorado, com inflamações nas pernas, reclamava para um homem com jaleco de atuador nos processos de resgate. Dizia ter sido deixado ali sem destinação. O outro orientou-o a voltar até o ponto de desembarque para falar com os assistentes sociais. O infeliz mostrou a água. O outro disse que pediria para alguém vir.

No Gasômetro

Seguiu com sua vara de apoio com a água alcançando a sua cintura.

Seguimos. No caminho, supermercados fechados, ruas alagadas, pessoas vagando em busca de sinal de internet, mulheres nas janelas, como antigamente, olhando o movimento dos barcos e dos humanos.

Em busca de sinal

Quando chegamos em casa não havia mais luz.

Sou contra partidarização de tragédias.

Não posso, porém, tapar enchente com tela.

Só pensavam em vender tudo.

Sistema bom é o que articula livre iniciativa com Estado atuante pelo bem público.

O telefona toca. É da França. Querem saber como estamos.

Digo que o prefeito pediu, para quem puder, deixar a cidade por algum tempo.

É preciso dizer mais?

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