Juremir Machado da Silva

Quatro capítulos sobre o Golpe de 64: 1. Origens

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Quatro capítulos sobre o Golpe de 64: 1. Origens Foto: Divulgação / Dossiê Jango / ABr

Nos próximos dias, Juremir publica trechos de seu livro 1964, golpe midiático-civil-militar. Leia aqui todos os capítulos.

Na longa história das narrativas supostamente edificantes é preciso reconhecer uma lei de validade possivelmente universal: a mídia não canta os homens e suas armas, mas as ideologias e os seus interesses. Depois de superado o tempo da acumulação primitiva do capital, fruto de investimentos arriscados, outra regra se impõe: reconstruir o passado conforme os valores do presente em nome de um futuro prestigioso. A mídia não apenas escreve a história do seu tempo, ela, principalmente, reescreve a sua história no tempo.

A mídia (na época se dizia imprensa) colaborou na preparação do golpe militar desfechado no Brasil há 60 anos, em 31 de março de 1964. Mais do que isso, serviu como intelectual legitimador da operação que levou à queda do presidente João Goulart. A imprensa atuou como “intelectual orgânico” do golpe, dito militar, que derrubou Jango. O marxista italiano Antônio Gramsci consagrou a categoria “intelectual orgânico”: “Cada grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, de um mundo orgânico, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e político: o empresariado capitalista cria consigo o técnico da indústria, o cientista da economia política, o organizador de uma nova cultura, de um novo direito”. A mídia foi o intelectual orgânico do empresariado da modernização conservadora brasileira em luta contra o nacionalismo trabalhista que rotulou, para desqualificar, de populista e de demagógico.

Gramsci destacou, com certa ironia, que “o tipo tradicional e vulgarizado do intelectual é fornecido pelo literato, pelo filósofo, pelo artista. Por isso, os jornalistas – que creem ser literatos, filósofos, artistas – creem também ser os ‘verdadeiros’ intelectuais”. Em 1964, o jornalismo brasileiro, numa fase mais amadora do que profissional, era composto por literatos, pseudo-filósofos e artistas, quase todos convencidos da sua condição de “verdadeiros intelectuais” e com mais de um emprego para ganhar a vida, o jornalismo funcionando como um “bico” para dar visibilidade. Cabia-lhes definir o certo e o errado, influenciar a política e apontar o caminho da modernidade. Na concepção de Gramsci, porém, o intelectual orgânico do capitalismo é um capacho: “Os intelectuais são os ‘comissários’ do grupo dominante para o exercício das funções subalternas da hegemonia social e do governo político”. É papel desses “comissários” garantir o consenso “espontâneo” da massa aos projetos das elites e diminuir, pela ideologia, o trabalho do “aparato de coerção estatal”.

A imprensa brasileira cumpriu rigorosamente esse papel na preparação e legitimação do golpe de 1964. Usou todo o seu prestígio para convencer parte da população, especialmente as classes médias, a aderir aos propósitos das elites econômicas vinculadas aos interesses do capital internacional. O trabalho intelectual dos jornalistas consistiu numa operação de guerra retórica para desqualificar as “reformas de base” de Jango como sendo antimodernas, retrógradas, inexequíveis, demagógicas, populistas e, suprema chantagem da época, comunistas. Mais tarde, depois do AI-5 e da introdução da censura nas redações, parte dessa imprensa trabalharia para alterar as narrativas sobre si mesma de maneira a ter um novo e mais bonito papel no regime militar. O jornal “O Estado de S. Paulo” gosta de relembrar os épicos tempos em que publicava receitas de bolo ou poemas de Camões nos espaços de matérias censuradas. Nem a censura, porém, extinguiu o apoio no essencial de jornais como o “Estadão” aos generais ditadores.

(Do meu livro 1964, golpe midiático-civil-militar. Porto Alegre: Sulina).

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