Juremir Machado da Silva

Século kafkiano

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Século kafkiano Foto: Rami Gzon/Unsplash

Quando certa noite Franz Kafka adormeceu, após alguns bocejos, no meio das páginas de um grosso volume tranquilizante (“Poesia contemporânea”), não imaginava o terrível pesadelo que se seguiria: acordou metamorfoseado num bípede monstruoso. Estava deitado sobre suas costas moles, não sentia mais todas as suas patas e teimava em visualizar seu nome de trás para diante: Kafka. Com Samsa era a mesma coisa. Mais tarde, considerou essa a sua primeira grande descoberta como crítico literário. Para uma traça que regredira à condição de homem, não era pouco. Na verdade, era impensável.

“O que aconteceu comigo?” – pensou, abalado. Ergueu-se e sentiu uma vertigem. Podia ficar na vertical e arrastar-se como um fio que se movesse, embora aquela forma de locomoção não apresentasse nenhuma estabilidade e parecesse-lhe bastante primitiva. Não era um pesadelo. Era pior. Não estava mais nas páginas de um calhamaço tedioso, mas num quarto verdadeiramente humano, enorme. Quis vomitar. Sentiu asco. “Ah, meu Deus!”, exclamou. Por mais que tentasse, não conseguia andar confortavelmente de quatro, mesmo tendo a espécie humana jeito para a coisa e um passado menos ereto. 

Experimentou uma leve coceira no baixo ventre; encontrou o lugar onde estava coçando, cheio de uma porção de pelinhos que não soube avaliar; quis esfregá-los com uma mão, mas sentiu um calafrio na região em torno e excitado desistiu. Chocou-se com uma imagem irada de Joe Biden na televisão ligada e recuou. Na Palestina, israelenses atacavam um povo inteiro para caçar um grupo de terroristas que havia cometido meses anos uma atrocidade com inocentes. No Rio de Janeiro, milícias controlavam territórios onde o Estado não entrava. Em São Paulo, o governador jurava conhecer o Estado. Na Europa, a guerra rugia como quase sempre e todos falavam em paz. No Brasil, o BBB24 fazia pensar numa era em que a televisão era o centro de tudo.

“Acordar cedo assim deixa a pessoa completamente embotada”, comentou consigo mesmo, já percebendo algo essencial da sua nova natureza. “O ser humano precisa ter o seu sono”, completou. As traças são diferentes. Membros de uma espécie superior, não se interessam por televisão. Eruditas, alimentam-se de livros. Recusam-se a aderir ao virtual e veem na Internet um universo sem consistência. O papel para elas é uma marca de civilização. Enquanto refletia sobre tudo isso na maior calma, sem querer mais sair da cama, Kafka ouviu uma leva batida na porta. Seria um desses terríveis bípedes que borrifavam inseticida nas páginas no seu tempo feliz de traça? 

Puxou o cobertor e tapou a cabeça. Ficou com os pés destapados. Inverteu a situação. Voltou a olhar para a televisão. No “Bom dia, Brasil” anunciavam um novo embate entre o Centrão e o presidente da República. Pelo que entendeu, os deputados queriam mais dinheiro e mais poder, o que executivo tentava não aceitar, salvo por votos para alguma reforma. Achou que ainda era um humano muito recente para entender essa lógica. Traça, sorriu pela primeira vez, não entende nada. A batida acentuou-se.

Estremeceu. 

Entrou um homem e começou a gritar. Kafka tentou enfiar-se dentro de um livro. Impossível. Os livros já não salvam ninguém. Odiou aquele ser disforme, de ventre proeminente, esquisito, cheio de pelos espessos sob o nariz, que suava e agitava-se como se tivesse caído num tonel de Jimo. O sujeito falava em segurança, qualidade total e pontualidade. Estava feliz com as tais reformas. Parecia conhecê-lo desde sempre. Kafka murmurou algo. O homem assustou-se: “Você está com uma voz de animal”. Que voz bizarra!

Kafka percebeu que algo de muito grave lhe acontecera. Sentiu que não havia mais retorno. Uma voz mais aguda chegou aos seus ouvidos. Entrou uma moça. Todo o corpo de Kafka foi sacudido por algo muito estranho. Estava perdido. Nunca mais seria o mesmo. Quando o homem e a mulher saíram, ficou buscando no ar o rastro do perfume dela. Sobre a mesa, havia uma fatia de queijo. Comeu feito um bicho. “Será que agora eu tenho menos sensibilidade?”, perguntou-se, chupando os dedos. Caiu num torpor. Dormiu toda a manhã. Quando acordou, sempre perplexo com a sua nova condição, respirou fundo, pensou na moça e, instintivamente, buscou uma distração. Não havia nenhum livro no quarto. Ligou a televisão e viu a sessão da tarde.

Franz Kafka morreu em 3 de junho de 1924.

Depois dele, vivemos um século kafkiano.

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