Juremir Machado da Silva

Sessenta anos de golpismo no Brasil

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Sessenta anos de golpismo no Brasil Tanques no Congresso Nacional após golpe de 1964 | Arquivo Público do Distrito Federal

Escrevi muito sobre o golpe de 1964. Publiquei o livro 1964, golpe midiático-civil-militar (Sulina). Volto a ele para exprimir, nos 60 anos do começo da nossa última ditadura, o que pesquisei, analisei e continuo pensando.

Diz-se que no Brasil tudo termina em pizza. Especialmente os casos que deveriam sair do forno como pratos feitos para uma mudança de imaginário. Tudo termina em pizza e em bola rolando. Aquilo que não se pode alterar vira bola no chão. Afinal, somos o país do futebol carnavalizado e do carnaval em ritmo de dribles sinuosos. A participação da mídia no golpe de 1964 é uma das maiores pizzas da história brasileira. Mereceria uma taça mais importante que a Jules Rimet, a taça do tricampeonato no México, o tri da ditadura, roubada e derretida. Os torturadores não foram punidos.

Só os resistentes foram tri em punição: tortura, prisão e julgamento. Ou tortura, prisão e morte. Ou tortura, prisão e exílio. Ou cassação, prisão e exílio. Alguns foram tetra e até penta antes do tempo: cassação, prisão, tortura, exílio e morte. João Goulart não foi preso nem torturado. Foi brindado com deposição, cassação e exílio. A morte livrou a ditadura do seu incômodo retorno depois ou mesmo antes da abertura. O que teria feito, com seu carisma, se tivesse voltado? A imprensa nunca lhe pediu desculpas. Jornais e jornalistas acostumaram-se a destruir reputações em manchetes e a admitir equívocos em erratas que exigem lupas para ser lidas. Quando não preferem o silêncio ou a repetição do erro até que se torne verdade.

Em 2014, 50 anos depois do golpe midiático-civil-militar, o Brasil realizou eleições presidenciais, com a presidente Dilma Rousseff, a ex-guerrilheira presa e torturada pela regime militar, na condição de candidata do Partido dos Trabalhadores. O país sediaria uma Copa do Mundo de futebol, esporte que serviu ao pior da ditadura, em 1970, quando a Seleção Brasileira sagrou-se tricampeã mundial, no México, e vivia-se o auge da repressão e da ideologia do “Brasil, ame-o ou deixe-o”, conforme o slogan criado pela propaganda ufanista e excludente dos presidentes fardados.

O golpe de 1964 resultou de uma tripla traição: a dos militares, que traíram a pátria em nome dos interesses norte-americanos; a das elites brasileiras comprometidas com o capital internacional; e a dos jornalistas, que traíram o compromisso com a liberdade e com a verdade por excesso de conservadorismo e por atuar como “intelectuais orgânicos” da modernização conservadora.

A inteligência de Jango e o reacionarismo das elites de 1964, cujos ecos ressoam ainda hoje em relação a programas assistenciais como Bolsa-Família, refletem-se nesta tirada espirituosa do então presidente da República: “Os reacionários gostam de usar o argumento segundo o qual os trabalhadores do Interior, mal recebem seu dinheiro, vão ao botequim mais próximo bebê-lo de cachaça. É um argumento absurdo porque os reacionários não são abstêmios”. Tudo mudou e muito continua igual no universo das narrativas.

Na aspereza do poder, Jango tinha amadurecido para as reformas de que o Brasil tanto precisava. A estupidez dos donos de jornal e a arrogância dos jornalistas, atolados na ignorância, na ingenuidade ou no conservadorismo, levaram a imprensa a ajudar a depor o homem que tentava arrancar o Brasil do muito que ainda lhe restava de hediondo.

Todas as justificativas inventadas antes e depois do golpe não passam de racionalizações para colorir uma narrativa cujas cores esmaeceriam com o tempo. Como diria a canção de Lupicínio Rodrigues, esses moços, pobres moços [pobres jornalistas de 1964] (…) deixam o céu por ser escuro e vão ao inferno à procura de luz. Essa luz dos militares queimou mãos, corações e mentes de muitos que se julgavam acima do céu e do inferno.

Tudo se desencadeara com a revolta dos sargentos, em 11 de setembro de 1963, em Brasília. Antônio Garcia Filho elegera-se deputado, com 16.510 votos, pela Guanabara. O Tribunal Superior Eleitoral não lhe deu posse considerando inelegíveis os sargentos. Os tenentes entraram, com seus métodos peculiares, na política brasileira nos anos 1920.

As altas patentes sempre tiveram privilégios no jogo político do Brasil. Os anos 1960 viram a entrada em cena das baixas patentes. Marinheiros de baixo escalão queriam casar-se. O sargento Gelci Rodrigues Correia, em maio de 1962, propôs o uso do instrumento de trabalho, o fuzil, como ferramenta para convencer os “reacionários” da importância das “reformas de base”.

Foi nesse cenário que Jango teve de mover-se. Em 4 de outubro de 1963, pediu ao Congresso Nacional a decretação do Estado de Sítio para controlar os extremismos. A esquerda, inclusive Miguel Arrais, viu nessa proposta uma guinada conservadora. A direita viu nesse mesmo pedido uma tentativa de golpe esquerdista. Jango teve de desistir dessa ideia.

Nesses tempos em que se lia Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, a liberdade era uma meta a ser alcançada. Nesses dias trepidantes e criativos em que se revolucionava o teatro, a música e o cinema, tempos de teatro de Arena e Oficina, de Bossa Nova, de debates sobre amor livre, dos Centros Populares de Cultura, de emancipação do oprimido, de forte atuação da União Nacional de Estudantes (UNE), que fazia greves e reivindicava participação dos estudantes nos colegiados universitários de decisão, nada mais era intocável. Jango percebeu, em meio à ebulição, que precisava estar em sintonia com os anseios do seu tempo. Aprendeu enquanto governava.

[Em 2016, um golpe midiático-jurídico-parlamentar derrubaria Dilma Rousseff. Em 2022 e 2023. Jair Bolsonaro tentaria um novo golpe militar. Faltou-lhe o apoio de parte das Forças Armadas e de grande parte da mídia].

Não se dá golpe sem a imprensa.

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