Juremir Machado da Silva

Últimos mascarados

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Últimos mascarados Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Cláudia e eu continuamos usando máscara. Está cada vez mais difícil. É preciso dar explicações, justificar-se, quase pedir desculpas. Parece até que estamos desconfiando que as pessoas carregam vírus escondidos em algum lugar. O problema é que me acostumei a andar de máscara. Para mim, funciona como andar de meia, de cueca ou de camisa. Não consigo me imaginar na rua sem meia, sem cueca e sem camisa. Nem mesmo no verão mais tórrido. A meia, num calorão, até tiro. Já a camisa, salvo na praia, nem pensar. A cueca então.

Como farei para abandonar a máscara? É tão fácil de usar, tão confortável, segura, higiênica. Confesso: eu não sei mais viver sem máscara. Já faz parte do meu figurino. Durante o auge da pandemia eu falava de máscara e todo mundo entendia. Agora, pedem para eu repetir o que disse. Tenho a impressão de que é truque para manifestar desagrado com a minha insistência em permanecer mascarado. Alguns até dizem não me reconhecer. Pode ser. A máscara passou a fazer parte do meu vestuário, da minha identidade, do meu conforto pessoal. Como um lenço. Há quem carregue lenço de pano no bolso. Cada um com seu gosto.

Outro dia, uma pessoa me perguntou com a maior candura:

– Por que essa máscara? Algum problema de saúde?

Não encontrei o que responder. Queria dizer algo inteligente, espirituoso, bem-humorado, capaz de ficar na memória do interlocutor.

– É um vestígio – acabei por dizer.

– De que mesmo?

– De uma pandemia acontecida há algum tempo.

A pessoa riu. Parecia que eu tinha contado uma piada muito divertida. Riu e disse que também havia usado máscara no passado. Falou assim mesmo, no passado, como se o passado em questão fosse, de fato, um passado, ou seja, um passado distante como a gripe espanhola, a revolução francesa, a revolução farroupilha, o golpe de 1964, o último título brasileiro do Inter, a Jovem Guarda, coisas assim.

Quase me irritei. Aliás, uma das vantagens da máscara é que ela cobre algumas das nossas expressões incontidas. Tive um conhecido, bom de papo, com quem não conseguia falar por causa dos perdigotos que ele disparava sem parar. A máscara permitiu que nos aproximássemos. Ele é bom de papo. Fala coisa interessantes. Pretendo continuar conversando com ele por aplicativo. Tem aquele cara que fala e vai avançando para cima da gente, dando cutiladas com a ponta dos dedos em nossos braços. Cada conversa é como uma luta entre dois espadachins. Quando um encontrei um desses, ainda na época em que todos usavam máscaras, tivemos uma conversa que parecia uma luta entre Zorro e seu duplo.

Estou preocupado. Talvez devesse fazer terapia para tirar a proteção facial. Se saio sem máscara, por raro esquecimento, me sinto pelado na rua. Trato de cobrir a boca e o nariz com as mãos. Dias desses, num arroubo moralista, olhei para uma moça sem máscara e quase disse:

– Que indecência!

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