Juremir Machado da Silva

Tristana, do que eu me lembro

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Tristana, do que eu me lembro Fernando Rey e Catherine Deneuve, em "Tristana" | Reprodução

Foi no Capitólio que eu vi Tristana, de Luis Buñuel. O filme é de 1970. Mas eu devo tê-lo visto lá por 1982 ou 1983. Era um ciclo, creio, do cinema espanhol ou do surrealismo. Eu me lembro com nitidez daquela noite de lua tênue e vento suavemente frio. Ainda posso ver os rostos de Catherine Deneuve, Fernando Rey e Franco Nero dando vida aos personagens de uma história, rigorosamente falando, banal: a bela órfã que se envolve amorosamente com seu idoso e inteligente protetor. O surgimento de um jovem vigoroso e bonito abre uma fissura na tela dessa relação improvável.

Fiquei tão impressionado com o filme que escrevi um poema inspirado nele, o qual seria musicado por um colega, Francisco Camboim, e cantado em algumas festas de nossa turma da Faculdade de Comunicação da PUCRS.

É feito de barro o sonho de um surrealista
Suas cores são internas…
Marrons como a terra que pisamos
Azul é o devaneio
Uma fuga pelo meio
Da tristeza e desencanto.
Toledo de Buñuel
É imagem de Tristana
Tristana, Triste Ana
Que no caos da ideologia
É a chama do meu fim.
Revejo sua partida
Choro em despedida
E Toledo desvanece
Nas nuvens brancas de uma prece,
Uma prece pagã
Tristana, triste Ana.

Hoje, com sinceridade, já não sei o que me mobilizou tanto. O filme é de uma tristeza infinita. A noite tinha uma bruma que jamais revi. Perdi o hábito de andar vagando pelas noites da cidade. Naquela época, por alguma razão que desconheço, eu achava bonito ser triste. Tristana era triste no nome, na história e na fisionomia da grande atriz francesa.

Estudante de história e de jornalismo, anarquista em meio a trotskistas, leninistas, stalinistas e raros liberais, eu me preocupava com o “caos da ideologia” (o que seria?) e com as cores da terra que pisamos. Quando pude, fui a Toledo. Seguia a influência de Tristana de Buñuel e do Enterro do conde de Orgaz, de El Greco, exposto na igreja toledana de São Tomé. Gostei por anos tanto dessa pintura que, apesar de retratar um funeral, cheguei a emoldurar uma cópia para fixá-la em minha sala de trabalho. Depois, não sei quando, o encantamento passou.

Eu era jovem, modelava sonhos surrealistas em barro vermelho. No dia em que fiquei velho, cantarolei em voz alta para meu espanto:

É feito de barro o sonho de um surrealista
Suas cores são internas…
Marrons como a terra que pisamos.

E agora? O que significa tudo isso? Não sei. Há, porém, uma beleza triste nessas lembranças que deixaram rastros. Não digo que se trate de uma beleza a ser apreciada por quem não viu o filme nem viveu aquele tempo. Talvez nem mesmo por quem esteve naquela sala naquela noite. Digo que sou arrastado por certa nostalgia e me vejo às portas do Capitólio procurando por aquela bruma, aquele vento, aqueles rostos, aquela atmosfera, aquele instante que se cristalizou na memória errante. Certa vez, quando me deixei levar por uma saudade esquisita, fui parar na frente do velho cinema, onde vi passar um rapaz magro de cabelos compridos, óculos redondos, cachecol e nariz aquilino: era eu. Para onde ia?

Para o passado? Para o futuro?

Nunca saberei.

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