Nanni Rios, colunista
Nanni Rios

Balanço de fim de ano

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Balanço de fim de ano Ilustração: Leonilson

Tem um poema do Leonardo Fróes sobre a vida no campo (como a maioria dos poemas que ele escreve), mas um especificamente sobre escrever no meio do mato, que traz uma imagem bastante singela (como são, na minha opinião, as melhores imagens), mas que despertou em mim uma espiral infinita de pensamentos. 

Notem o que a poesia faz: desde que li esse poema pela primeira vez, numa revista, sempre retorno a ele. E sempre que apresento o Fróes a alguém, abro o volume Poesia reunida 1968-2021 (Editora 34) numa página já marcada e leio aqueles versos como exemplares.

O poeta conta que, para cada poema que escreve, são sacrificados “2 ou 3” mosquitos desavisados, que, no breu da madrugada e atraídos pela única fonte de luz da casa, acabam espremidos no rolo da máquina de escrever. “Cadáveres” é como ele os chama. Em seguida o dia (re)nasce. Daí vem Pablo Neruda, alma de artista, cachorros latindo, um macacão enorme. A vida (e a poesia) na espiral infinita do rolo da máquina.

*

Uma vez eu briguei feio com um amigo. Nos conhecemos em 2008, fomos bem próximos por muito tempo, mas do nada algo saiu do lugar. Vale dizer que a briga não teve nada a ver com as eleições de 2018, porque se tivesse, daria pra resumir o assunto numa divergência de índole, mas não foi o caso.

Mais ou menos assim: pintou uma vaga de trabalho em outro estado e ele foi. Até aí tudo ótimo: falávamos por telefone com frequência e nos visitávamos duas ou três vezes por ano. Até que numa dessas visitas, notei algo de muito errado acontecendo. Protestei e senti que não fui ouvida. E um abismo se abriu no chão. Isso foi em 2021, se não me falha a memória. 

Seguiram-se muitos meses de comunicação escassa, mínima, fria. Sofri, obviamente, mas entendi que aquela relação não teria mais o investimento da minha energia. Tenho ascendente em escorpião, entendam.

*

Plantar n’algum lugar
Ressuscitar no chão
(…)
Morre e nasce trigo
Vive e morre pão

*

O poeta Ricardo Domeneck publicou recentemente um livro chamado Cabeça de galinha no chão de cimento (Editora 34), um conjunto de poemas que evocam relações familiares: a imagem que dá título ao livro, por exemplo, é protagonizada pela avó do poeta.

Apresentando assim, pode parecer mais do mesmo: ares de psicanálise, vovó, vovô, lembranças de família, piegas etc e tal. Mas em se tratando de poemas do Ricardo, desconfie. Nunca será mesmice.

O livro saiu no ano passado, mas só li há pouco e agora eu tenho uma nova obsessão poética – mais uma: um poema espiralar que começa com uma memória recente – a tensão constante dos tempos de covid-19 – para, em seguida, distensionar evocando uma nostalgia bucólica (ainda que urbana) de um passado com menos informação, mais tranquilo e interiorano. Não sei vocês, mas isso me toca profundamente, sobretudo por ser o retrato de uma ilusão frágil e incauta – porém muito difundida – de ideais de família, de República e de paz. Tem muito por aí.

O poema mergulha nessa nostalgia, uma vibe “no passado, a gente era feliz e não sabia”, mas com ironia ainda camuflada:

ambição era poder comprar coxão mole
em vez de duro

todas as vacas e frangos e porcos eram felizes

(…)
tivemos afinal aquelas primeiras lições
da fauna caseira,
as lagartixas perambulando pelas paredes
enquanto a família ouvia Cid Moreira
relatar as desgraças da República,
e pais e mães e filhos descansavam
de vez em quando a atenção das notícias
com a caça das lagartixas
aos mosquitos e às varejeiras.

(…)
estavam vivas as avós,
o Brasil era nosso,
eram puros e infindáveis o petróleo e a água.

Até que de repente, não mais que de repente, a narrativa se torna espiralar, morte-vida, eterno retorno. E é aí que eu sinto que serei engolida:

Tudo seguia uma lei e uma teia
de alianças, a fauna caseira aguava
na estiagem a flora, os cães
dependiam dos primatas, atraíam as moscas
todos os bichos peludos da casa, da mãe ao cão,
e sempre torcia-se pelas lagartixas
em caça às moscas e em fuga dos gatos

Tudo dava cria:
os primatas, os cães, os gatos, os morcegos, as lagartixas e as moscas
repondo o que se perdia numa sucessão que nos iludia,
idiotas da fartura eterna como se questão de tempo apenas
para que os mortos voltassem todos na pele de filhotes nossos

A essa altura, eu voltei a pensar nos mortos da covid-19 e na inoperância nada ingênua de quem permitiu que as coisas seguissem de mal a pior. E o que parecia a evocação de um conforto familiar (em todos os sentidos), se desfaz:

Mas sabemos hoje que tínhamos passado os olhos
rápido demais sobre os desastres da República,
que Cid Moreira selecionava os lutos
e custava muito mais às moscas alimentar
nossas lagartixas, o bife no prato sofrera
do parto da vaca ao matadouro
que a República
tinha sido desde o começo e antes
e que morrer e matar aos poucos
era já morrer e matar demais

(…)
no fundo as bolsas
que temos medo que caiam
são apenas aquelas que podem revelar
algum segredo pessoal ou familiar
nas calçadas da avenida ou do passeio público

Enfim, o bom de falar de poesia é que não se aplica o conceito de spoiler, certo? Então aí vai: ele termina o poema citando Elza Soares, que quis cantar até o fim – fim? E tem também baleias e cachorros na última página. 

Sem se dar conta, você leu um poema de seis páginas chamado Balanço de fim de ano.

*

Cada poema original que escrevo à máquina contém pelo menos 2 ou 3
cadáveres de mosquitos esfregados no rolo.
Isso porque escrevo muito de madrugada com a luz acesa .
Antes de amanhecer eu apago para espiar a mutação de cores.
Meu editor um dia vai receber a coleção completa.
Parece que Pablo Neruda colecionava por sua vez caramujos.
Uma senhora que me visitou outro dia achou que tenho alma de artista.
Como as pessoas são boas observadoras agora.
Os meus cachorros latem muito de noite quando estou escrevendo.
Eu acho isso muito chato porque fico tenso.
Às vezes eu penso que vai sair do mato um macacão enorme.

Taí o poema citado do Fróes. Perdão por não ter trazido antes. Mas que bom que, na espiral, sempre é tempo.

*

Dia desses, morreu Antônio Bispo dos Santos, intelectual brilhante, ativista comprometido e líder inspirador – ou, como ele mesmo preferia ser referenciado: um “lavrador das palavras”.  E nos deixou como legado inúmeros saberes oriundos da vivência quilombola, parte deles reunidos em texto no genial A terra dá, a terra quer (Ubu Editora). 

O conceito-chave da obra é o de “contracolonização”, um modo de vida que precede a colonização. Eita. Mas você não leu errado: o conceito se chama contracolonização e veio antes da colonização. Mas como é possível, se isso rompe uma linha lógica de nomenclaturas? Ora, é preciso desarmar arapucas coloniais e se entregar a essa ironia que desmonta o modus operandi da linguagem.

Não se trata de uma contraposição binária (como costuma se comportar a linguagem tradicional), mas sim de um pensamento fronteiriço, ou “afro-pindorâmico” para compreender o mundo de forma “diversal”, formado por uma variedade de ecossistemas, idiomas, espécies e reinos. 

Nêgo Bispo é irresistível e você deve estar querendo largar esse texto pra sair atrás do livro dele, mas eu vou terminar com um conceito interessantíssimo (e espiralar!), do qual ele já falou em diversas entrevistas. Ao contrário do que se acredita, não somos início, meio e fim, mas sim: começo, meio e começo. Somos retorno e somos continuidade, ancestralidade, raízes e sementes.

*

Aquele amigo com quem tive uma briga feia me ligou na segunda à noite. Do nada. Eu, que vivo com o celular no modo “Não perturbe”, que bloqueia todas as chamadas, só vi o registro da ligação alguns minutos depois. Achei estranho, retornei a ligação, mas ele não atendeu. Será que aconteceu algo?

Abri o whatsapp e digitei (meio que sem saber como retomar um fio rompido há muitos meses) uma saudação genérica. Mas ao invés de um “oie” enviei “ois”. Ele respondeu no segundo seguinte: “Ois é ótimo! Um monte de ‘oi’ acumulado”. Tive que rir, relaxei, baixei a guarda. Liguei novamente e foram 27 minutos de conversa, como nos velhos tempos, como se nada tivesse acontecido.

*

Assisti a Leda Maria Martins ao vivo pela primeira vez na última Flip. Ela é autora, entre outros, do livro Performances do tempo espiralar (Cobogó), que reúne ensaios escritos a partir da observação de práticas comunitárias e no fundamento cognitivo de vários grupos étnicos africanos. Um livro imperdível, que recomendo fortemente, mas não é dele que eu vou falar aqui. Quero evocar a performance de Leda na conversa com Christina Sharpe e mediação de Jamille Pinheiro Dias, que foi parte da programação principal da festa. 

Sharpe é canadense e veio ao Brasil lançar o livro No vestígio: negritude e existência, também pela Ubu. Ela é uma pessoa discreta, de movimentos mínimos e um tanto formal nos modos. Bem diferente de Leda, que, para dar início à sua participação, puxou uma cantoria de abertura, estimulando o público a cantar junto, repetindo os versos que ela entoava. 

Quando a música chegava ao fim, ela se levantava e pedia “vamos de novo!”, angariando ainda mais participação do público. As letras pareciam ser de cantigas de roda. Era nítido que aquilo não tinha sido combinado, pois todos os protocolos que norteavam a dinâmica das mesas da programação principal da Flip estavam sendo quebrados.

Sharpe não cantou junto, acho que pela barreira da língua, mas bateu palmas no ritmo do canto. Não houve constrangimento, mas havia nítida surpresa de todos com aquele jeito nada tradicional (e espiralar!) de se expressar num evento literário tão mainstream como a Flip.

*

No terceiro andar da última Bienal de Arte de São Paulo, próximo às esculturas de Abdias do Nascimento, havia uma espécie de caverna escura com uma grande abertura, que deixava a entrada livre, sem cortinas ou aqueles labirintos típicos das entradas de salas escuras em exposições de arte. 

Quem conhece sabe que o prédio da Bienal é fartamente iluminado, mas um só passo para dentro da caverna era suficiente para te jogar na mais absoluta escuridão. Lá dentro havia somente algumas almofadas pretas no chão e um som constante, a gravação de um falatório apressado e por vezes difícil de entender.

Autoexplicativa, a obra era o famoso Falatório de Stella do Patrocínio. O texto de apresentação da obra no site da Bienal diz o seguinte:

A cada minuto que se passa em 1 hora, 39 minutos e 15 segundos dessas gravações, Patrocínio opera uma nova dobra no tempo, fazendo curvar aquelas linhas horizontalizadas – das que foram desenhadas pelo manicômio às da literatura –, que lhe roubaram o corpo, que quiseram lhe roubar a palavra. Essa debandada, até pouco tempo atrás ecoada por taras degenerativas, eugenias, o fetiche da loucura, a poesia!, se vê estraçalhada por um falatório que refunda a própria arena de guerrilha. E afirma: apesar de Eco, estes são os meus termos. 

(…)

o tempo espirala: atravessada por forças de asfixia – a polícia, a literatura, o serviço doméstico, o eletrochoque –, Stella do Patrocínio abre seu falatório exuriano à criação de rotas de fuga e ao revide, à fabulação estética no espaço da clausura. E é nessa opacidade que baila o falatório – nem somente poesia, nem testemunho, tampouco quaisquer outras classificações que, sozinhas, não se bastam

(…)

Numa linguagem que vadia em pretuguês ritmado, sincopando a repetição das diferenças, Stella desaloja noções prévias do que seja o tempo, espaço, casa, família, ciência, o corpo e seu estudo – e segue para o mais longe possível. Sua vocálica contém vértebras, e constrói mundos de linguagem para lançar um falatório-exu que rasga o tempo e que mata, hoje, os ecos de ontem.

Stella nasceu em 1941, recebeu o diagnóstico de “doente mental” aos 21 anos e passou 30 anos vivendo internada na Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro. Morreu em 1992, aos 51 anos. E só dez anos depois, o seu falatório (modo como ela mesma denominava o seu poder de enunciação) foi transcrito, recortado, organizado e publicado por Viviane Mosé como um livro de poesia intitulado Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (Azougue).

Das notícias que saíra na época, é comum a referência ao “retorno” de Stella do Patrocínio – mais uma prova de que o fim não existe. Ou, como dizia o Nêgo Bispo, somos começo, meio e começo.

Lembro que visitei a obra de Stella na Bienal em companhia de Carola Saavedra, autora de O mundo desdobrável: ensaios para depois do fim (Relicário) – vejam onde o pensamento espiralar nos trouxe.

Eu e Carola chegamos cedo à Bienal, tomamos um café e fomos direto ao Falatório. Entramos naquela caverna, nos acomodamos nas almofadas e inauguramos o nosso próprio falatório: a conversa durou horas lá dentro e o restante da Bienal ficou para outro dia.

*

Carola diz que minha escrita é espiralar. Deve ser por isso que não consigo dar conta de um raciocínio em menos de quatro ou cinco páginas. Fico lambendo o assunto, repassando ideias, exemplos, chistes e anedotas até me dar por satisfeita e não sem deixar portas e janelas abertas, gavetas e armários remexidos, dúvidas e senões pelo caminho.

*

A linearidade é uma ficção.

*

Agora um poema. Em linha reta:

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia
Que contasse, não uma violência, mas uma covardia
Não, são todos o ideal, se os oiço e me falam
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil
Ó príncipes, meus irmãos

(Poema em linha reta, de Álvaro de Campos)

*

Seis páginas, chega.

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