Nanni Rios, colunista
Nanni Rios

Do que é feita uma livraria

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Do que é feita uma livraria Foto: Nanni Rios

Quem acompanha essa coluna já deve ter notado que eu curto uma viagem no tempo. É bom olhar as coisas em perspectiva, sem achatá-las no presente. As coisas geralmente não são só o que são, mas são também o que já foram e até o que não são mais.

Por exemplo: “não se nasce mulher, torna-se mulher”. A máxima feminista de Simone de Beauvoir é um exemplo disso que eu chamo aqui de perspectiva. Ser mulher não é algo dado ou definido por um critério objetivo. Tampouco a interpretação da frase é fechada, tanto que segue costurando debates até hoje, mais de 70 anos depois de sua publicação no antológico O segundo sexo.

Mas como eu ia dizendo, me interessa o sentido de perspectiva que essa máxima feminista traz. E é por esse viés que escrevo hoje sobre a Livraria Baleia, nesta primeira coluna de 2024, o ano em que a livraria comemora sua primeira década de existência.

Já de saída, um primeiro aviso aos navegantes: essa não é uma história de mar calmo. Por isso eu costumo dizer – parafraseando Beauvoir – que “não se nasce Baleia, torna-se Baleia”.

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Era 2014 e o Brasil vivia algo que se podia chamar de normalidade democrática. Tínhamos uma mulher ocupando o posto máximo do Poder Executivo – algo que naquela época, confesso, não me chamava muita atenção, porque o debate feminista ainda não tinha a força e a abrangência social que tem hoje. Da mesma forma que algumas feministas de outrora, eu não me identificava com esse epíteto. Menos por oposição, obviamente, e mais pelo estigma que o termo carregava (e ainda carrega em alguns contextos até hoje). Mas é inegável o peso simbólico de ter uma presidenta conduzindo o país, tendo ou não letramento de gênero. 

Eu trabalhava na L&PM Editores, uma casa editorial tradicional com sede em Porto Alegre, tinha 20 e poucos anos de idade e um monte de sonhos. Afinal, até Presidenta da República eu podia ser, se quisesse.

As coisas na L&PM iam muito bem, eu trabalhava no meio de um monte de livros, produzia conteúdo sobre literatura, dividia meus dias com pessoas incríveis e aprendia muito com elas. Tinha carteira assinada, plano de saúde, VT, VR e sabia de colegas que estavam na editora há 10, 20, 30 anos, mas mesmo assim resolvi pedir as contas. Mandei o juízo pras cucuias. Naquele momento, o que me seduzia era a ideia de abrir um espaço cultural junto com alguns amigos, numa casa que alugaríamos e pagaríamos com o que produzíssemos dentro dela, a exemplo do inúmeros centros culturais independentes que eu tinha conhecido durante uma viagem à Argentina – país que em 2014 também tinha uma mulher ocupando o posto máximo do Poder Executivo. Eram outros tempos na América Latina.

Pois bem: meu negócio dentro dessa casa seria uma livraria. Mas não uma simples loja de livros. Seria uma livraria focada em eventos, saraus e festas literárias, a exemplo do que eu tinha visto em Buenos Aires. Seria uma livraria que entende a literatura como encontro. Os livros nas estantes seriam “apenas” suporte para uma literatura viva, feita de presença, de pessoas. Montei um ambiente com sofás e estantes, com cara de sala de casa mesmo, tudo comprado por uma pechincha em lojas de móveis usados. A ideia era ter à venda só os livros que eu gostava e/ou sabia falar sobre, sem qualquer compromisso com a lista dos mais vendidos da semana.

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Sempre que olho para trás e relembro esse início, me escapa um riso nervoso, mas não menos orgulhoso. Hoje me parece um sonho quixotesco entrar dessa forma num mercado tomado pelas megastores, que já naquela época não vendiam só livros, mas também CDs, DVDs, eletrônicos etc. Cultura e Saraiva tinham lojas apoteóticas nos maiores shopping centers do país e tinham sites para venda online (pequenas livrarias não tinham essa possibilidade até então, porque fazer um e-commerce era bem caro). 

A Amazon tinha iniciado a operação no Brasil há pouco e já nos intrigava com seus preços imbatíveis (e impraticáveis). Eu, que vinha de uma adolescência inteira enfurnada em sebos de rua, cujos donos eram verdadeiras enciclopédias literárias e se prestavam a horas e horas de papo para a escolha de um livro, sentia que a estética do shopping center não combinava com livraria. A ausência de uma livreira ou livreiro era uma questão ética. Logo, não me render à “tendência” apresentada por Amazon, Cultura e Saraiva (as brasileiras também demitiram seus livreiros, copiando o modelo gringo) era uma questão política.

Que fique nítido que na época eu não elaborava nada disso. Ética, estética, política, feminismo, antirracismo, neoliberalismo, entre outras palavras, só entraram no meu vocabulário mais tarde, quando o tempo fechou. 

Veio 2016 e o golpe que tirou Dilma injustamente e conduziu Temer ilegitimamente à presidência. O fim do Ministério da Cultura, os cortes na Educação, um calvário. Depois veio 2018, as eleições do ódio, Bolsonaro presidente, o caos concreto e completo. O letramento social, racial e de gênero veio a fórceps.

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Hoje penso que em 2014 eu era feliz – tinha referências, coragem, liberdade e poder de mudar as coisas – e não sabia. Também não elaborava, à época, que o modelo de negócio da Amazon (imitado por Cultura e Saraiva) correspondia a um ethos neoliberal, uma ideologia nefasta que patrocinou o colapso social e econômico dos principais países da América Latina: derrubou Dilma, substituiu Cristina e sucedeu Bachelet, entregando o Brasil a Bolsonaro, condenando os argentinos à miséria e à recessão no governo Macri e explodindo uma verdadeira guerra civil no Chile sob Piñera.

Sim, eu vejo questões de gênero em tudo. Fato é que quando o tempo fechou aqui no Brasil, estava em curso no mundo a chamada “quarta onda feminista”, desta vez com amplo alcance e potencial de difusão via redes sociais. Mesmo com o conservadorismo dominando as estruturas de poder (ou, quem sabe, justamente por isso), essa onda chegou com muita força e deu corpo a um verdadeiro tsunami de publicações de obras feministas e antirracistas contemporâneas, importantes resgates e traduções de textos dos anos 60, 70 e 80 que ainda não tinham sido publicadas por aqui, além de um crescente interesse pelas autorias negras e indígenas e pela perspectiva decolonial.

Foi nessa onda que a Baleia fez a sua formação e tornou-se uma referência em literaturas de autoria feminista e antirracista e nas temáticas de gênero, sexualidade e direitos humanos, uma vez que o público interessado nesse “nicho” só crescia. Até as feministas enrustidas como eu saíram do armário. Vivíamos um momento de equilíbrio perfeito entre oferta e demanda, condição ideal de navegação em mares capitalistas. E isso contém ironia.

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Em 2019, por ocasião da morte de Toni Morrison, o escritor e crítico literário Luiz Maurício Azevedo preparava um material especial para ser publicado no suplemento literário do jornal Correio do Povo em homenagem a uma das maiores escritoras do mundo, grande cronista da América, única mulher negra a ganhar um Prêmio Nobel de Literatura. 

Ele me pediu para comentar a presença e a circulação dos livros de Morrison nas livrarias. Uma encomenda bastante tendenciosa, que antecipava em si mesma a história que eu teria pra contar. Ou seja, todo mundo sabia que não era fácil encontrar os livros de Morrison nas livrarias, mesmo com todos os predicados que a autora acumulava.

Como livreira, posso afirmar que os livros de Toni Morrison não aparecem na prateleira de uma livraria por geração espontânea. Não é algo “natural”, já que os livros de Toni Morrison não estão na lista dos mais vendidos da semana. Por isso, a mão invisível do mercado não toca as páginas de Amada, Jazz ou Sula.

Os livros de Toni Morrison só chegam às prateleiras de algumas livrarias pela vontade de uma atenta livreira ou livreiro que enxergue (ainda que por uma fresta possível, em meio a pilhas de best-sellers) o tamanho da importância dos livros de Toni Morrison na gênese da literatura negra contemporânea.

Se os livros de Conceição Evaristo e Chimamanda Ngozi Adichie estão entre os mais vendidos hoje é porque um dia elas leram os romances de Toni Morrison. A best-seller Djamila Ribeiro não se cansa de dizer que O olho mais azul é o livro que mudou sua vida. Pouca gente sabe que quem “revelou” Angela Davis como escritora foi Toni Morrison, quando era editora na célebre Random House. 

Diante disso, como surfar na onda dos mais vendidos sem respeitar a genealogia desse movimento, que colocou, finalmente, escritoras negras nos catálogos das maiores editoras do país e nos palcos dos principais eventos literários, fazendo alguma justiça depois de anos de exclusão? 

Pra dizer que, na minha opinião, livraria não pode viver só de pão quentinho (com todo o respeito ao pão quentinho). O lançamento que faz sucesso hoje, mais do que nunca, tem suas raízes no trabalho muitas vezes não reconhecido de alguma antecessora. Ou, como todas elas fazem questão de lembrar: seus passos vêm de longe. 

A autora de Deus ajude essa criança certamente previu isso quando deixou o seguinte conselho: “Se há um livro que você quer ler e não foi escrito ainda, então você deve escrevê-lo”. Mas de nada vai adiantar se livreiras e livreiros fecharem os olhos para isso.

Toni Morrison tem um Prêmio Nobel e um Pulitzer no currículo, mas nem isso é suficiente para torná-la presença obrigatória nas estantes de toda livraria que se preze. Em vez disso, uma profusão de autores brancos com sua relevância formal (vá lá), mas sem valor revolucionário. Afinal, quem não faz literatura para mudar o mundo não chegou em 2024.

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Costumo brincar que a Baleia vai para sua 4ª temporada de muitas aventuras e confusões na sessão da tarde. Em resumo, foi assim:

Depois de estrear no formato coletivo em 2014 e viver tudo isso que contei lá no início, nos mudamos para o Centro Histórico, numa casa ainda dividida, só que com menos gente. Era 2018, a gente sabia que as coisas não iam bem, mas não fazíamos ideia de que íamos de mal a pior. Em 2020, como se não bastasse um governo que odeia a Cultura (para Bolsonaro, “os livros hoje em dia, como regra, é um montão… um amontoado… muita coisa escrita… tem que suavizar aquilo”), começamos a amargar as primeiras restrições da pandemia de covid19. Em 2021, ainda de portas fechadas, mas com esperança na vacinação que acabara de começar, lançamos uma campanha de financiamento coletivo, que prosperou graças ao engajamento da comunidade de leitores e leitoras que a Baleia cativou ao longo desses anos todos. As contribuições garantiram nossa subsistência por mais alguns meses. Mas ao contrário do que nosso otimismo imperturbável sugeria, as condições sanitárias demoraram a melhorar. Diferente de muitos negócios que prosperaram no ambiente online durante a pandemia, a Baleia sempre dependeu da presença física do público, que se aglomerava em encontros, saraus, festas, cursos e oficinas dentro da livraria. Mudar isso significaria mudar a essência da Baleia.

Em 2022, depois de muitos percalços e sem nem conseguir honrar as recompensas do financiamento coletivo do ano anterior, seguimos remando: entregamos o endereço do Centro Histórico e migramos para uma operação itinerante num trailer e a Baleia virou uma livraria sobre rodas. 2022 foi também o ano em que conheci o Marcelo, meu sócio, o sujeito responsável por não deixar o samba morrer. Em 2023, eu e Marcelo reorganizamos a casa e saímos juntos em busca de um novo endereço para a livraria. 

E, finalmente, para 2024 temos novidades: no dia 2 de fevereiro – dia de festa no mar! – a Baleia reabre ao público na Rua dos Andradas, conhecida localmente como Rua da Praia, no nº 351 (endereço que já foi ocupado pela saudosa Galeria Península), em frente à Praça Brigadeiro Sampaio ou Praça do Tambor, um território cheio de simbolismo para a luta antirracista de Porto Alegre, conhecido até o início do século 20 como Largo da Forca, título que dispensa explicações.

Dito isso, volto à questão: do que é feita uma livraria? E penso que seria bem raso dizer que uma livraria é feita de livros. Uma livraria se faz, essencialmente, de referências. Um livro não existe sozinho no mundo. Livro tem família, amigos, inimigos, contexto, propósito e, com sorte, alguma ancestralidade. Uma livraria também. Afinal, uma livraria não nasce Baleia, torna-se Baleia.

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