Nanni Rios, colunista
Nanni Rios

Jardins da Babilônia

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Jardins da Babilônia Imagem da exposição "Christina Balbão – Além do silêncio" | Foto: Nanni Rios

Nellie Bly (1864 – 1922) foi o pseudônimo utilizado por Elizabeth Jane Cochrane para atuar como jornalista num tempo em que mulheres não podiam escrever matérias, votar ou sequer usar calças compridas. As poucas mulheres que conseguiam trabalhar num jornal acabavam nas editorias de amenidades ou nos “assuntos de mulher”, considerados menos importantes. Mas Nellie queria mais. E seu editor no jornal New York World – ninguém menos do que Joseph Pulitzer, cujo nome batizaria o famoso prêmio literário – notou suas ambições e lhe propôs um desafio: se passar por louca e conseguir ser admitida num manicômio com o objetivo de investigar denúncias de maus tratos.

A estratégia funcionou: Nellie enganou policiais, juízes e médicos e, com isso, tinha a prova cabal da falta de rigor técnico em diagnósticos e internações de pacientes psiquiátricos. Uma vez dentro do manicômio, ela se desfez da personagem e quanto mais lúcida se apresentava, mais a consideravam louca e lhe aplicavam tratamentos desnecessários. Dez dias depois (ufa!), um advogado do jornal a tirou de lá e a história de tudo que ela viu e viveu foi revelada no New York World ao longo de uma série de reportagens reunidas, depois, no livro Dez dias no hospício (que, no Brasil, ganhou prefácio da jornalista Patrícia Campos Mello, um dos alvos preferidos da família Bolsonaro na imprensa).

Após esse grande feito, que resultou numa reforma psiquiátrica no país, Nellie ficou famosa e passou a emplacar outras pautas ainda mais ousadas, como uma volta ao mundo em 72 dias – aos 24 anos, sozinha e com uma única mala – superando a famosa marca de Phileas Fogg, o personagem de Julio Verne. Ela cobriu ainda a Primeira Guerra Mundial e foi uma das poucas vozes femininas na imprensa a cobrir o movimento pelo direito ao voto das mulheres nos Estados Unidos, que marcaria o que, hoje, a historiografia chama de “primeira onda feminista”.

Quando correu a notícia de que a intrépida repórter embarcaria para uma volta ao mundo em menos de 80 dias, houve quem duvidasse, obviamente. Mas o melhor era o motivo: achavam impossível uma mulher fazer caber tudo que precisava para viajar em uma única mala.

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Quem não chora dali
não mama daqui
diz o ditado

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A artista e professora gaúcha Christina Balbão (1917-2007) teve uma vida inteira dedicada às artes. Além da uma vasta produção artística, ela foi professora do Instituto de Artes da UFRGS e uma profissional fundamental para a construção e qualificação do MARGS, o Museu de Arte do Rio Grande do Sul, desde a sua criação, em 1954, atuando como responsável pelo acervo, organizadora de exposições, técnica administrativa, mediadora para o público visitante, museóloga e arquivista.

Christina foi aposentada compulsoriamente da UFRGS em 1987, aos 70 anos, mas seguiu contribuindo ativamente nas atividades do MARGS até o fim da vida. Sua obra foi doada pela família ao Museu em 2018 e, finalmente, foi colocada em exposição pela primeira vez por um trio de curadoras: Cristina Barros, Blanca Brites e Mel Ferrari. Com cerca de 130 peças, entre pinturas, esculturas, desenhos, fotografias e documentos, a mostra intitulada Além do silêncio está em cartaz até 10 de março no primeiro andar do Museu, com visitação gratuita.

De tudo o que vi lá, confesso que o que mais me chamou atenção, para além das obras, foi um texto curatorial sobre seus primeiros anos dedicados à pintura. Ao lado de dois quadrinhos redondos datados de 1931 (quando a artista tinha 14 anos de idade), o texto conta que, ao contrário do que era costume na época, Christina cresceu ouvindo seu pai dizer: “para mal casada, melhor solteira”. Liberada da compulsoriedade do casamento, Christina estava livre para ser uma artista independente, experimental e ousada.

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Pra pedir silêncio, eu berro
pra fazer barulho eu mesma faço
ou não

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Eu sou muito fã de Joan Didion (1934 – 2021), jornalista, ficcionista e uma das pioneiras do “new journalism” nos Estados Unidos. Inclusive tento imitá-la aqui nessas colunas quando escrevo de forma fragmentada, em blocos separados por asteriscos. Gosto de juntar evidências sobre uma ideia sem necessariamente interligá-las ou justificá-las, abrindo mão de qualquer linearidade. Me sinto livre pensando nas coisas de forma constelacional, sem submeter uma história à gravidade da outra e permitindo que todas pairem no ar e interajam (ou não).

Reli recentemente O ano do pensamento mágico, em que Didion relembra a perda repentina do marido, o escritor John Dunne, e o período de incertezas e medo durante o tratamento de saúde da filha, Quintana Roo, cuja morte, apenas dois anos depois da passagem de John, viraria o assunto de outro livro de memórias, o Noites azuis.

Joan e John eram escritores famosos e formavam um casal amplamente admirado. Foram quase 40 anos de casamento. Tudo que um escrevia, o outro editava. E vice-versa. Há memórias lindas no livro. Mas há também momentos incômodos, que são contados com naturalidade e cuja leitura, suponho, ganhou outras camadas de sentido com a evolução do debate feminista. Joan conta da vez em que estavam transferindo Quintana de avião para outro hospital e aconteceu o seguinte:

“Decolamos. Voamos por um tempo. Um dos paramédicos tinha uma câmera digital e não parava de tirar fotos de algo que insistia em chamar de Grand Canyon. Eu disse a ele que provavelmente era o lago Mead, a barragem Hoover. Apontei para Las Vegas.
O paramédico continuou a tirar fotos.
Também continuou a se referir ao que via como o Grand Canyon.
‘Por que você tem sempre que estar certa?’, eu me lembro de John dizendo.
Era uma queixa, uma acusação, parte de uma discussão.
Ele nunca entendia que, em minha mente, eu nunca estava certa.”

Na sequência, ela conta que estava revisando as provas do romance Nothing lost, que John deixou praticamente pronto. Havia uma frase onde ela acrescentaria uma preposição, mas não tinha certeza. “Nunca aprendi de fato as regras gramaticais, valendo-me apenas do que me soava correto, mas havia algo nesse trecho que eu não tinha certeza se soava bem”. 

Ela verificou os originais, e o erro – se é que era um erro – estava lá desde o início. Então lembrou mais uma vez do marido dizendo “Por que você sempre tem que estar certa? Por que você sempre tem que ter a última palavra? Pelo menos uma vez na vida, deixe de lado” e ela deixou como estava.

Esse trecho alugou um triplex na minha cabeça: se até a Joan Didion passava por isso, o que resta pra nós?

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Minha saúde não é de ferro, não
mas meus nervos são de aço

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No ano passado, eu produzi um show de uma cantora em Porto Alegre. Era uma produção de médio porte: cinco pessoas viajando, banda, especificações técnicas de som e luz, aéreas, hospedagem, alimentação, passagem de som. Tudo transcorreu sem sobressaltos. E eu não tenho equipe, cuido de tudo pessoalmente. Dá uma trabalheira, mas eu adoro. Quando chegou o grande dia, tudo pronto, casa cheia, o show foi lindo, um sucesso. 

Como conheço bem os gostos da artista, levei para o camarim os ingredientes necessários para fazer um belo negroni e brindarmos depois do show. Copo baixo, o gelo do tamanho correto, um bom gin, vermute rosso, campari e laranjas, que seriam cortadas em rodelas para finalizar.

Depois que o show terminou, o público em catarse, fui ao camarim para celebrarmos. Alcancei todos os itens, misturei as doses com medidor e quando fui finalizar, tomei um susto: um cara atrás de mim, do nada, disse “não é assim!”. Parei tudo, todo mundo olhou. Ele se aproximou, pegou a faca da minha mão e me ensinou como se corta uma laranja. 

*

O palhaço ri dali
o povo chora daqui
e o show não para

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Dia desses, a influencer e produtora de conteúdo sobre diversidade Beta Boechat abriu uma caixinha de interação no Instagram e recebeu a seguinte pergunta: “Quando foi que você teve o estalo final de ‘eu sou uma mulher’?” (Beta é uma mulher trans)

A resposta dela: “Eu acho que foi quando os homens começaram a me explicar as coisas como se eu fosse uma idiota”.

*

Os homens explicam tudo pra mim é um ensaio icônico de Rebecca Solnit sobre mansplaining, uma prática machista em que homens assumem que, independentemente do assunto, eles têm mais conhecimento sobre o tema do que as mulheres. 

O texto começa com um causo que ela viveu: um homem passou uma festa inteira falando de um livro que “ela deveria ler”, sem lhe dar chance de dizer que, na verdade, ela era a autora.

*

Pegar fogo nunca foi atração de circo
mas de qualquer maneira
pode ser um caloroso espetáculo

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Meu ponto não é se Joan Didion estava certa ou não sobre a localização do Grand Canyon ou sobre as preposições na regra gramatical. O fato é que tudo que uma mulher fala pode ser ignorado, diminuído ou contestado, não importando se ela está certa ou não. Não temos a liberdade de errar, sob pena de ter nossa credibilidade enterrada. Por isso que, em geral, na dúvida, a gente nem tenta. Nem quando temos certeza de que o Grand Canyon fica a centenas de milhas de distância de Las Vegas.

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Tenho pensado naquela máxima pop-feminista meio fabular e, na prática, de domínio público, que diz: sem saber que era impossível (ou proibido), foi lá e fez. E eu teria feito um belo negroni.

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