Nanni Rios, colunista
Nanni Rios

Livros em conflito

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Livros em conflito Foto: Jakob Rubner/Unsplash

Eu começo a escrever essa coluna sobre livros pensando que qualquer assunto é um detalhe menor das imagens que tenho visto nas redes sociais nos últimos dias. Penso que eu deveria estar escrevendo sobre Gaza, sobre as crianças de Gaza, sobre as guerras, o terrorismo e as crianças aterrorizadas, sobre racismo, intolerância religiosa ou sobre a falta de apreço da extrema direita por crianças, por exemplo. Escrever sobre civis inocentes em geral, crianças e adultos, que nada têm a ver com o narcisismo bélico dos donos do poder.

Também pensei em escrever sobre perspectiva, como a dos brasileiros repatriados que, no auge da emoção histriônica de quem escapou de uma guerra do outro lado do mundo graças a um resgate promovido pelo Estado brasileiro e amplamente televisionado, demonstra grande contentamento por voltar a viver num país “em paz”. Se você acompanha o noticiário nacional com atenção, deve ter, como eu, arregalado os olhos para essa afirmação que é, ao mesmo tempo, comovente e contestável, a depender da perspectiva. E não tem julgamento aqui, viu? Todos os sentimentos são legítimos, ao meu ver.

É curioso que nunca vivi sob o som de bombas e mísseis cortando o céu e também não sei como é viver diariamente a realidade das periferias brasileiras, onde a guerra é constante e se arrasta por décadas, sem sombra de solução no horizonte. Mas eu tenho a perspectiva de ambos, que acessei por meio da literatura.

*

O clube de livros da Livraria Baleia foi uma ideia que pintou durante o isolamento social da covid-19 como uma forma de seguir dialogando com leitores e leitoras mesmo com a loja fechada, sugerindo livros que permitissem sentir o pulso do mundo e que, de alguma forma, nos ajudassem a entender o caos em que estávamos (e estamos) metidos: emergência climática, uma pandemia desconhecida, as armadilhas da evolução tecnológica, conflitos geopolíticos, os debates étnicos, raciais e de gênero, entre outros assuntos do momento. Eu sentia que as pessoas estavam mais atentas e sedentas por conteúdo. 

Você deve estar pensando que essa foi uma proposta bem ousada, mas eu sigo sustentando que para qualquer assunto nesse mundo existe um livro, seja de ficção, com outras perspectivas de mundo, de não-ficção com dados e informações objetivas, ou até poesia, para mastigar e digerir as coisas por outras vias, além da razão e da alteridade.

Lancei o clube ainda em 2020 e me lembro agora de uma cena até meio corriqueira, mas bastante representativa de como eu fazia a escolha dos livros. Era maio de 2021, eu estava varrendo o chão da livraria enquanto ouvia meus podcasts diários de notícias: tinha explodido mais um conflito Israel x Palestina e o assunto estava de volta no foco do noticiário. Então juntei rapidamente o que tinha varrido, larguei a vassoura e procurei nas estantes o livro Tornar-se Palestina, de Lina Meruane, para reler. E estava decidido o livro que seria enviado aos assinantes do clube naquele mês.

Lina nasceu no Chile, país que abriga a maior comunidade de palestinos fora da Palestina no mundo. Sua família emigrou em fuga do Oriente Médio rumo a América do Sul. Seus avós palestinos mudaram de nome ao chegar, se tornaram Salvador e Maria e se instalaram no Chile, onde viveram por décadas, tiveram filhos e netos e lá estão enterrados. Do espanhol, que é a sua primeira língua, Lina invoca o verbo “volver”, que pode ser traduzido como “voltar” e também como “tornar-se”.

Volverse Palestina é o título original do livro, que mistura ensaio com relato de viagem e encontra nos dois significados do verbo o movimento que Lina resolve empreender, concreta e simbolicamente, de retorno às raízes e de tornar-se o outro para reconhecê-lo na diferença.

Na primeira parte do livro, ela introduz os primeiros “personagens” desta história: o pai que costuma se esquivar quando surge o assunto sobre origens; o avô que já desejou “volverse”, em 1967, mas foi impedido pela Guerra dos Seis Dias; o amigo escritor que vive em Beit Jala e incentiva Lina a “volverse Palestina” para escrever um livro; um taxista, que a lança definitivamente nessa viagem.

O que Lina encontra no retorno recente à Palestina é muito parecido com o que seu avô relatava no início do século passado e também com o que acompanhamos pelo noticiário naquele imbróglio de maio de 2021 – que, por sua vez, se assemelha ao que estamos vendo nesta mais recente investida terrorista que já se consolida como a maior tragédia de toda a história do conflito Israel x Palestina. É uma espécie de compasso fúnebre de eterno retorno.

Na segunda parte do livro, intitulada Tornar-nos outros, Lina se dedica a analisar textos e conferências de escritores israelenses sensíveis ao que importa no conflito, entre eles David Grossman e Amos Oz. Ela escreve “com a convicção de que toda palavra é uma bandeira içada acenando aos sábios e aliciando os incautos”, o que facilmente se aplica à cobertura midiática do conflito no Brasil, por exemplo. 

Agora me permitam reproduzir aqui um trecho sobre a importância das palavras num conflito geopolítico:

“Volto algumas páginas para revisar as palavras que fui acumulando. Antissemitismo, shoah e lar seguro, mas também nakba, casas arrasadas e retornos impossíveis. Silêncio. Direitos. Despejo. Destruição. Combatentes legais. Terrorismo. Neste ponto crítico do planeta, cada palavra ativa ecos e ressonâncias imprevisíveis e perigosas. Em uma nova página em branco, escrevo outra daquelas palavras complicadas – m u r o – com a plena certeza de que preferir, ou proferir, este substantivo indica uma posição política. Dizer muro é reduzir a quatro letras uma quilométrica barreira de concreto, alta, lisa, cinzenta, que às vezes é uma cerca de arame farpado, que em alguns trechos está eletrificada: menos para eletrocutar do que para indicar a presença de um corpo inimigo. (…) A escolha [da palavra] não é neutra. Não pode ser. Nessa região não existe neutralidade. Não é inofensiva, tampouco a política do muro.”

Um pouco antes, ela escreve: “o silêncio é uma palavra impermeável” quando descreve os escombros de Gaza, porque o silêncio é também (e sempre) a memória de um ruído.

*

A Frankfurter Buchmesse, mais pronunciável como Feira do Livro de Frankfurt, é uma das feiras de negócios mais importantes do mundo para o mercado editorial. Inúmeros países enviam seus editores, escritores e representantes de Estado para o evento, que em 2023 acontece de 18 a 22 de outubro, bem na data de publicação desta coluna. 

Eu já andava tomada pela releitura do livro de Lina Meruane e ciente de que não conseguiria facilmente escapar de escrever sobre esse assunto, mas ainda faltavam alguns dias para a entrega do texto. Como quem tenta virar a página da vida (ou só do dia, vai), passei um café e abri uma nova aba no Google. Digitei “Feira de Frankfurt” em busca da programação do evento e fui jogada novamente para dentro do assunto, pois a primeira página inteirinha de resultados no buscador apontava para a mesma notícia: o cancelamento da participação da escritora palestina Adania Shibli por parte do evento e suas repercussões. 

A autora seria homenageada com o prêmio LiBeraturpreis 2023 por seu livro A Minor Matter, publicado no Brasil com o título Detalhe menor, que conta a história uma menina beduína palestina que foi estuprada e assassinada pelas forças de segurança de Israel em 1949, um ano depois da nakba – palavra árabe que significa “catástrofe” ou “desastre”, como ficou conhecido o êxodo de 1948, quando mais de 70 mil árabes palestinos (segundo dados da ONU) fugiram ou foram expulsos de seus lares em razão da guerra civil de 1947 e da Guerra Árabe-Israelense de 1948.

Na nota de cancelamento, uma justificativa bastante vaga e não menos tendenciosa: “devido à guerra em Israel”. A Feira de Frankfurt virou alvo de manifestos públicos de autores de peso e desistências de diversas editoras e instituições. Um grupo de cerca de mil escritores e profissionais do livro divulgou uma carta aberta contra a decisão da associação alemã que organiza a premiação, a Litprom.

O assunto é tão tabu que, no Brasil, a editora Todavia – que publica Shibli em tradução de Safa Jubran, professora da USP e uma das maiores autoridades brasileiras em literatura árabe – divulgou um comunicado em que afirma ter aderido à carta conjunta, mas não dá detalhes sobre o ocorrido e sequer traduz a carta, publicada em inglês. Nos comentários do post nas redes sociais, leitoras e leitores cobram da editora um posicionamento mais nítido e, sobretudo, uma defesa mais contundente de sua autora diante do que ficou entendido como silenciamento.

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Termino esse texto com uma leve contratura nas costas, do lado esquerdo. Vários cafés depois, respirando fundo em alguns momentos, mas também muito comovida e grata pela oportunidade de voltar/volver ao livro de Meruane, tão humano e necessário. Outra coisa comovente nesse livro e digna de nota é a tradução da incrível Mariana Sanchez, que capta com atenção e delicadeza os jogos de palavras tão caros ao texto.

E pra não dizer que nao falei das flores, vou terminar com uma que “furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”, algo que talvez você (como eu) nunca tenha cogitado procurar ou aventar que existisse: uma antologia de 17 jovens poetas nascidos em Gaza, entre eles o organizador da coletânea, Muhammad Taysir. Gaza, terra da poesia foi publicado em Beirute, em 2021, e a edição brasileira é a primeira tradução da obra no mundo, feita pelo GTPAC – Grupo de Tradução da Poesia Árabe Contemporânea da USP. A edição do livro é de Safra Jubran, tradutora já citada aqui, e Michel Sleiman, ambos professores de Língua e Literatura Árabe da USP.

“Os poetas de Gaza são jovens, não têm mais de 30 anos, mas sua poesia impacta. A maturidade dos versos talvez seja fruto de uma vida amadurecida às pressas, agarrada a um sentido urgente que faz da infância apenas um prelúdio”, diz a apresentação do livro, publicado pela bravíssima editora Tabla, especializada em literatura árabe.

Dá pra ver e ouvir os próprios poetas lendo seus versos no Youtube da Tabla.

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