Nanni Rios, colunista
Nanni Rios

Uma ministra negra e o aborto no Brasil

Change Size Text
Uma ministra negra e o aborto no Brasil Desde 1808, STF só teve três ministras mulheres, nenhuma negra | Foto: Nelson Jr/ STF

O Supremo Tribunal Federal de um país como o Brasil, cuja maioria da população é composta por mulheres, tem apenas duas representantes do gênero entre as suas 11 cadeiras. Este mesmo país, que é composto também por uma maioria negra, não tem nenhum representante negro em sua suprema corte. A demanda por mais representatividade de mulheres e pessoas negras no STF é uma questão latente e muito própria do agora e divide opiniões não só de conservadores x progressistas, mas dentro da própria esquerda, entre pessoas que dizem combater desigualdades e desejar um país mais justo.

*

A escritora francesa Annie Ernaux, de 93 anos, escreve a partir de suas experiências pessoais, que são atravessadas por reflexões de gênero e de classe, além de contextos sociais e geopolíticos da França e do mundo: zoom in e zoom out, o particular e o público em constante interação. E uma dessas experiências pessoais foi um aborto realizado em 1963, quando Ernaux tinha apenas 23 anos e a interrupção voluntária da gravidez ainda era ilegal em seu país. Sem o apoio do companheiro e sem poder contar para a família, a jovem universitária tinha apenas uma certeza: não teria aquele bebê. Esse é o enredo do livro “O acontecimento” que ela viria a escrever somente em 1999, mais de três décadas depois. “Se eu não relatar essa experiência até o fim, estarei contribuindo para obscurecer a realidade das mulheres e me acomodando do lado da dominação masculina do mundo”, escreveu. Em 2022, Annie Ernaux ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, a maior honraria literária do mundo, e sua obra – que contém, portanto, um livro sobre aborto – correu o mundo e foi publicada em diversos países, entre eles o Brasil.

*

A gaúcha Rosa Weber é uma das duas mulheres que têm cadeira na instância de decisões mais importante do país, o STF, indicada em 2011 por Dilma Rousseff, então presidenta do Brasil. A outra é Cármen Lúcia, indicada em 2006 por Lula. Antes delas, tivemos somente Ellen Gracie, indicada por Fernando Henrique Cardoso em 2000, que entrou para a história como a primeira mulher a ocupar uma cadeira no STF, instituição criada em 1808. Não é difícil fazer a conta: apenas três mulheres em 215 anos de história. E ainda assim, todas mulheres brancas. Nenhuma mulher negra.

*

Em 1971, na França, 343 mulheres – muitas delas famosas – estamparam a capa da revista “Nouvel Observateur” declarando já terem abortado. Auto-intitulado “manifesto das 343 vagabundas”, o movimento deflagrou o processo que culminaria com a criação da lei de 1975 que descriminalizou o aborto no país.

*

O podcast “Caso das 10 mil”, feito pela Folha de S.Paulo, conta a história de uma operação policial deflagrada em 2007 em Campo Grande (MS), que fechou uma clínica clandestina após denúncias e a apreensão de cerca de 10 mil prontuários de mulheres que procuraram o local para a realização de um aborto ao longo de quase duas décadas de funcionamento, de 1989 a 2007. Todos na cidade sabiam o que acontecia lá e poderosos de todas partes, incluindo políticos e empresários, utilizavam os serviços da médica Neide Mota Machado, o que lhe conferia a proteção necessária para continuar atuando. Até que uma reportagem-denúncia foi feita por um jornal local com repercussão nacional, provocando o indiciamento de centenas de mulheres pela prática de crime de aborto previsto em lei, com base nos dados dos prontuários. Além disso, o podcast apurou que não houve qualquer cuidado com a proteção dos prontuários encontrados e centenas de mulheres tiveram seus dados pessoais expostos em listas no jornal local, algo semelhante a um linchamento público com efeito moralizante.

*

Dados da Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) coordenada pela antropóloga Débora Diniz e divulgada em 2021 mostram que uma em cada sete mulheres brasileiras com mais de 40 anos já realizou ao menos um aborto ao longo da vida. Num país como o Brasil em que o aborto é criminalizado, salvo em casos específicos como gravidez de risco à vida da gestante, gravidez resultante de violência sexual ou em caso de anencefalia fetal, o procedimento de interrupção voluntária da gravidez é realizado de forma precária e insegura em clínicas clandestinas ou mesmo em casa, sem a devida assitência médica e psicológica. Ainda de acordo com a PNA de 2021, são as mulheres negras as principais vítimas dessa negligência do Estado, correspondendo a 47,9% das internações e 45,2% dos óbitos por aborto, contra 24% e 17% das mulheres brancas, respectivamente.

*

Acabou de sair no Brasil o livro “Dezessete anos” da jornalista e escritora francesa Colombe Schneck, publicado em 2015 na França e tido como uma resposta direta à convocação feita por Ernaux no livro “O acontecimento”. Ela relembra, em linguagem direta e em detalhes, a experiência de ter abortado após uma gravidez indesejada. Só que o acontecimento de Schneck foi em 1984, 20 anos depois de Ernaux e 10 anos após a descriminalização do aborto na França. Ainda que o contexto seja completamente diferente, com boas condições sanitárias e a companhia dos pais, as dúvidas, a angústia e o silêncio em torno de um dos atos mais secretos na vida das mulheres continuavam e continuam os mesmos. “Talvez haja algo sujo no aborto? (…) Então, me calo”, conta, para em seguida relembrar a primeira vez que falou sobre o assunto a uma mulher que acabara de conhecer: “Confio-lhe dois segredos que nunca pude compartilhar com ninguém. Meu avô paterno foi cortado em pedaços e colocado numa mala. E eu abortei”.

*

Se você que está lendo esse texto agora for uma mulher, é bem possível que já tenha feito ou conhece alguém que fez um aborto. Se você for um homem, talvez nunca tenha lidado com essa realidade, mas certamente tem acesso a essas informações, que são fartamente divulgadas na imprensa e nas redes sociais. A diferença entre homens e mulheres, nesse caso, é a opção (ou não) de ignorar certos assuntos.

*

28 de setembro é o Dia da Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto na América Latina e Caribe e é também o último dia de trabalho de Rosa Weber no STF, já que em 2 de outubro ela completa 75 anos e, por isso, sua aposentadoria é compulsória. Como presidenta do STF, ela tem a prerrogativa de decidir a pauta de debates e votações. Faltando menos de dois meses para deixar a suprema corte, ela pautou a ADPF 442, sobre a descriminalização do aborto voluntário até a 12ª semana. A votação está marcada para começar nesta sexta, 22 de setembro, e seu resultado pode ser um legado de suma importância para a garantia de saúde, liberdade e dignidade para mulheres brasileiras, como manda a constituição.

*

O presidente Lula vem sendo pressionado por movimentos sociais para indicar uma mulher negra como sucessora de Rosa Weber, já que o Brasil nunca teve uma ministra negra no STF. A campanha “Ministra Negra Já!” lançada pelo movimento Mulheres Negras Decidem (MND) fez uma lista tríplice com indicações: a juíza carioca Adriana Cruz, a promotora baiana Lívia Sant’Anna Vaz e a advogada gaúcha Soraia Mendes. O contra-argumento do presidente Lula e de alguns setores e representantes da esquerda é de que a escolha deve ser “técnica” e não pautada por questões identitárias, ainda que as três indicadas tenham currículo condizente com a função, formação técnica, experiência e atendem a todos os critérios objetivos para a vaga.

*

Se você que está lendo esse texto agora for uma pessoa branca, talvez lhe pareça razoável e neutro o argumento de que a escolha de um ministro ou ministra de suprema corte deve ser técnica, ainda que você reconheça que a desigualdade de gênero e raça é um dos maiores problemas do Brasil. E mesmo com acesso a essas informações, há quem não enxergue a necessidade de haver um viés identitário como critério de reparação e justiça. A diferença entre pessoas brancas e pessoas negras, nesse caso, é a opção (ou não) de ignorar certos assuntos.

*

Em 2006, a então ministra Ellen Gracie votou contra a manutenção da liminar que autorizava o aborto em caso de anencefalia do feto. Seu argumento era de que a decisão deveria ser do Congresso Nacional e não caberia ao Supremo servir de “atalho fácil” para uma questão que os representantes eleitos pelo povo brasileiro não se dispuseram a enfrentar. Como esperado, o Congresso nunca tocou no assunto e a descriminalização do aborto em caso de anencefalia do feto foi aprovada pelo STF somente em 2012, um ano após a aposentadoria da ministra.

*

Em 1974, a ministra da Saúde da França era Simone Veil, uma mulher judia, sobrevivente do holocausto nazista e de inclinações políticas liberais à direita. No dia 26 de novembro daquele ano, ela discursou para um parlamento 98% masculino sobre a proposta de descriminalização do aborto no país, dando início a um intenso e acalorado debate que durou cerca de 25 horas e resultou na aprovação da “lei Veil”, que garantiria o direito ao aborto legal e gratuito a partir do ano seguinte. O número estimado de mulheres que, até então, recorriam ao procedimento clandestinamente, arriscando morrerem ou serem presas, era de 300 mil por ano – entre elas, a jovem Annie Ernaux, que mais de uma década antes teve que realizar o procedimento de forma ilegal. O discurso histórico de Simone Veil está no livro “Uma lei para a história”, traduzido e publicado no Brasil em 2018, e é um convite a (re)pensar as estratégias que temos utilizado nas nossas lutas políticas por direitos numa sociedade essencialmente patriarcal e conservadora.

*

Em 2017, as advogadas Luciana Genro e Luciana Boiteux, integrantes do PSOL, um dos partidos brasileiros mais à esquerda no espectro político, protocolaram uma petição que questionava a criminalização do aborto prevista nos artigos 124 e 126 do Código Penal de 1940. Para elas, a lei viola “os princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana, da cidadania e da não discriminação, bem como os direitos fundamentais à inviolabilidade da vida, à liberdade, à igualdade, à proibição de tortura ou tratamento desumano ou degradante, à saúde e ao planejamento familiar”, dando origem a já mencionada ADPF 442, que entra em votação no Supremo nessa sexta, dia 22 de setembro de 2023, tendo como relatora e autora do primeiro voto a ministra Rosa Weber.

*

“Somos seres humanos como os demais, com diversas visões políticas e ideológicas. Eu, por exemplo, entre esquerda e direita, continuo sendo preta”, escreveu certa vez a filósofa Sueli Carneiro em artigo para a Carta Capital. E o assunto, na ocasião, nem era aborto.

*

Livros e podcast citados no texto:

“O acontecimento” de Annie Ernaux (Fósforo Editora, 2022)

“Dezessete anos” de Colombe Schneck (Relicário Edições, 2023)

“Uma lei para a história” de Simone Veil (Bazar do Tempo, 2018)

“Caso das 10 mil” da Folha de S. Paulo (2023)

RELACIONADAS

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.