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A Porto Alegre dos chapéus

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A Porto Alegre dos chapéus

Um chapéu é um objeto usado sobre a cabeça, útil para proteger-nos do sol, da chuva, do frio.  Com certeza sua invenção deve ter uma origem pré-histórica e, como todos os outros itens que a humanidade foi jogando sobre o corpo, passou a desempenhar uma função simbólica, hierárquica – talvez até mágica – até ser tocado pela moda e entrar no frenesi das novidades.

Nos anos de 1950, o chapéu vivia seu apogeu. Era um acessório indispensável tanto para homens quanto para mulheres. Se eles vestiam chapéus feitos de feltro, elas levavam modelos de todos os tamanhos e materiais, enfeitados com broches, penas, plumas, véus, com abas ou sem. 

Em Porto Alegre, os chapéus desfilavam na Rua da Praia. O nome oficial é Rua dos Andradas – mesmo que ninguém lembre. É a “praia” que persiste, para lembrar que a rua mais antiga da cidade é aquela que faz caminho até o porto. Celebrada por cronistas e viajantes, foi a rua mais elegante, com vitrines, cinema e onde era praticado o footing no fim da tarde.

A grande chapeleira da cidade era Mary Steigleder. Como lembra a jornalista Célia Ribeiro1, em seu ateliê na Rua dos Andradas subia-se uma escada num espaço com divisórias de madeira escura atapetado de veludo. Mary recebia suas clientes e as deixava encantadas com a sua beleza e o modo como se tornava manequim de seus próprios chapéus. Segundo Célia, a chapeleira viajava muito, assistia aos desfiles em Paris e fazia muitas compras no Rio de Janeiro e em São Paulo, onde era conhecida como “Mary Porto Alegre”

O sucesso dos chapéus de Mary era tão grande que inspirava outra Mary, a Kramer, que em seu atelier da Rua Dr. Flores copiava os modelos de Steigleder. 

Ainda no tempo das reminiscências, Nilo Ruschel lembra que “era tão democrática essa rua que comportava diversas engraxatarias ao longo das quadras principais. Havia lugar para todos: magazines, armazéns de especialidades, bares, barbearias, ferragens, perfumarias, restaurantes, casas lotéricas com suas cigarras tinindo em dias de extração, briques, alfaiatarias, farmácias, livrarias, redações de jornais, que faziam uivar as sirenes ao colocarem na sacada o placar da notícia importante, em quadro negro.”2

Rui, antes de se tornar o icônico costureiro, descrevia as elegantes que admirava à hora do footing nas páginas do jornal A Hora: “Na rua da Praia a Sra. Teresa Costa Gama foi vista com um bonito “tailleur” branco listrado de negro. A grande simplicidade é realçada por uma gola de veludo, igualmente negro. A Sra. Costa Gama é uma das mais bem vestidas da capital, segundo um grande  número de pessoas.”3

Antes de se dedicar aos vestidos, Rui também percorreu o caminho dos chapéus, como conta Luís Carlos Lisboa nas páginas da Revista do Globo: “Rui é um rapaz de 30 anos que sempre gostou de desenhar modelos. Um dia resolveu fazer a Europa e se foi para Paris. Isso aconteceu em 1952 e ele ficou na França por três anos. Estudou muito, observou mais ainda. Naquela época estava interessado na criação de chapéus mais do que tudo. Foi assistente de Jean-Barthet, considerado o maior chapeleiro do mundo. Frequentou a ‘Ecole Guere-Lavigne’ e a ‘La Haute Couture Parisienne”. Trabalhou muito para aprender e se sustentar. Nas horas vagas fazia chapéus para clientes brasileiras, apoiando-se na fama de ser auxiliar de Barthet. Fez estudos de figurino, de criação, de costura e corte, de História e de Psicologia da Moda”4

Foram-se os chapéus, as alfaiatarias, as cigarrarias, o footing. A rua ganhou novos comércios, novos gritos. É verdade que o passado ainda está lá. Pode ser visto na arquitetura, ele ficou em uma ou outra fachada, está marcado no grande relógio da joalheria Masson, no desenho do caminho que leva até o Guaíba.

Para além da memória, entre os registros que ficam, sejam eles os textos de jornais, as cartas, as histórias dos livros, as fotografias, prestando bem atenção sempre fica também um vestido, uma camisa, um lenço, uma bengala, um chapéu.

E nessa grande sobreposição de tempos, a moda e seus objetos faz perceber que é possível se retraçar a história (ou muitas histórias) a partir daquilo que se veste. Olhar para o passado a partir das roupas é perceber um fenômeno completo, capaz de incorporar um discurso histórico, econômico, etnológico e tecnológico, que também se aplica como linguagem dentro de um sistema de comunicação onde é possível delinear uma posição no mundo e a sua relação com ele.

Como fato social relacionado à cultura, a moda revela valores e gostos de determinados grupos sociais e estilos de vida de determinados locais ou períodos. Por isso, é necessário um olhar mais apurado, dedicado as suas adaptações, aos seus contágios, às suas ressignificações e seus híbridos.

A Porto Alegre dos chapéus guarda a história do comércio, de profissionais dedicados à moda, das suas elegantes e do ir e vir daqueles que queriam ver e ser vistos. 


1Apagou-se a estrela da moda do Sul. Zero Hora, 08 de julho de 1985.
2Rua da Praia. Nilo Ruschel, 1971.
3O que Porto Alegre viu semana passada, na coluna O que há de novo por Rui. Jornal A Hora, 1957.
4Revista do Globo, 1959.


Sobre a autora:
Renata Fratton Noronha é docente na Casamundi. Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em História da PUCRS, é mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Processos e Manifestações Culturais da Universidade Feevale. Foi estagiária no Departamento de Acessórios do Musée Galliera- Musée de la Moda de la Ville de Paris no período de formação Master 2 em Mode et Création, realizado na Univesité de la Modé- Lumière Lyon 2. Como pesquisadora, tem interesse por temas relacionados a historicidade, identidade e memória, especialmente quando inseridos nos processos e práticas do Design de Moda. É ainda professora do curso de Moda da Universidade Feevale onde coordena projetos vinculados à Moda no Centro de Design.

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