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Regularização fundiária: a necessidade de dar um passo adiante

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Regularização fundiária: a necessidade de dar um passo adiante

País de desigualdades e injustiças, mas também de lutas históricas e frágeis direitos adquiridos, o tema do acesso à terra e a regularização fundiária no Brasil tem importância histórica e está mais presente do que nunca no debate nacional.

Em Porto Alegre não é diferente. A propriedade e a ocupação de áreas nos diferentes bairros e pelos diversos extratos sociais da capital gaúcha, questões expressas, por exemplo, na atual revisão do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental (PDDUA), correm em paralelo com o retorno de programas federais como o Minha Casa Minha Vida, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e o Programa Periferia Viva. São pontos que trazem à tona problemas que ainda não tiveram solução, como a implementação dos instrumentos do Estatuto da Cidade, aprovado em 2001, e a Lei da REURB, de 2017.

No Brasil, a terra sempre teve um papel fundamental na relação de poder e dominação entre seus vários grupos populacionais: primeiro, a terra foi roubada de nossos povos originários para formar os latifúndios da elite colonial, com transmissão hereditária; em seguida, a propriedade teve papel central nas políticas de branqueamento da população, com incentivo às ondas migratórias de países europeus e facilitação de aquisição de lotes, enquanto a população negra e empobrecida era excluída do acesso à terra e à moradia. Esse mesmo segmento da população foi apartado da intensa urbanização vivida pelo Brasil ou, ainda, vivendo à margem desse processo, em ocupações, vilas e favelas, com acesso precário a serviços públicos e permanecendo fonte barata de trabalho à mesma elite de sempre.

Essa realidade já estava expressa na primeira vez que a ideia de um regramento da propriedade da terra surgiu nas leis brasileiras, com a criação, em 1850, da Lei de Terras do Império, que reforçou as desigualdades de raça e classe existentes então, ao permitir a legitimação da posse de quem ocupava, habitava e cultivava terras públicas “devolutas”. Quem era pobre ou escravizado já foi, de saída, segregado da possibilidade da compra de terras do governo. Pela expulsão desses grupos do grampo, a lei serviu como um embrião do processo de favelização. Dessa forma, a elite latifundiária e branca pôde se manter no poder, reforçando a permanência do latifúndio e beneficiada por uma legislação cujo objetivo era criar uma massa de trabalhadores nas fazendas, com baixos salários, mantendo, assim, o controle da terra nas mãos da elite.

Portanto, foi necessária muita pressão social para que fossem alcançados os avanços legais que contribuíram para que se chegasse ao cenário atual. A primeira lei federal a tratar do direito à terra foi a de nº 11.977, voltada à garantia de direitos aos moradores e responsabilização de quem contribui para a irregularidade fundiária.

Em busca de um caminho que não ficasse restrito somente à titulação de propriedade, abarcando também aspectos urbanísticos, territoriais e socioambientais, chegou-se à Lei Federal nº 13.465/2017, a Regularização Fundiária Urbana (REURB), aplicadas nas modalidades de Interesse Social (REURB-S) e Interesse Específico (REURB-E). Foi essa lei que conceituou a regularização fundiária como um “conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”.

No caso de Porto Alegre, a REURB-S aplica como critério uma renda familiar de até cinco salários-mínimos, e na qual as famílias são isentas de custos de infraestrutura, projetos técnicos e emolumentos. Na prática, porém, os órgãos públicos nem sempre providenciam a infraestrutura básica necessária; no segundo caso, as áreas gozam dos privilégios de relativização legal, mas precisam arcar com tributos e outros gastos relacionados. Em ambos os casos de requisição da REURB, é ao município que cabe o acolhimento, tramitação e eventual aprovação do pedido.

Segundo a prefeitura de Porto Alegre, desde o início da atual administração, em 2021, até janeiro de 2023, foram entregues 2.023 títulos de propriedades para famílias que vivem em “aglomerados subnormais” como vilas e favelas. Segundo dados de 2019 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), na Capital eram cerca de 61 mil moradias erguidas nessa situação. Ainda que a meta da gestão de Sebastião Melo (MDB) seja a de regularizar 6 mil lotes até o fim de seu mandato – e à véspera de um novo ano eleitoral nem metade desse objetivo foi cumprido, seria preciso um período equivalente a 10 mandatos para dar conta de regularizar os atuais assentamentos existentes na cidade.

Política municipal é insuficiente e enviesada

Sem ter produzido uma única moradia, o governo Melo mostra clara deficiência na minimização do déficit habitacional em Porto Alegre. Com a mesma lógica prioriza o investimento em equipamentos públicos, implantação de infraestrutura básica e urbanização em áreas que coincidam com os interesses do mercado imobiliário e da construção civil – setores que também têm participação ativa e pouco transparente no processo de revisão do Plano Diretor.

Além disso, os títulos de propriedade emitidos foram entregues prioritariamente em áreas onde já há infraestrutura e moradias menos precárias, pontuando um processo desigual que reserva às periferias apenas medidas paliativas. Ao mesmo tempo, a região central e o Quarto Distrito continuam sendo o destino da maior parte das obras públicas.

Nesse sentido, a lei da REURB não só é insuficiente para resolver o problema da desigualdade urbana como, no modo como é aplicada em Porto Alegre, por exemplo, pode agravar o processo de exclusão da população mais vulnerável das áreas com maior infraestrutura sem que se viabilize opções acessíveis de trabalho, lazer e o alcance a serviços públicos diversos.

É necessário, portanto, uma evolução a partir da REURB. Há alternativas com potencial positivo, como o Termo Territorial Coletivo (TTC). Unindo propósitos individuais e coletivos, o TTC possibilita consolidar a garantia de uso coletivo da terra por comunidades periféricas e tradicionais, colocando nas mãos da própria comunidade as decisões sobre o seu desenvolvimento.

Independente das soluções a serem estudadas e desenvolvidas, é fundamental considerar o caráter multidimensional da regularização fundiária. Legisladores e gestores públicos precisam necessariamente admitir a participação determinante das próprias comunidades interessadas nas diversas camadas existentes no processo. Energia, mobilidade, saneamento; acesso a escolas, serviços de saúde e à coleta de resíduos; o cumprimento de normas construtivas e urbanísticas que proporcionem conforto e segurança; e a consistência e garantia da posse e da ocupação do território estão entre os itens necessários para a consolidação de uma vida digna e livre do pesadelo de remoções, demolições e expulsões.


Colaboraram

  • Integrantes do Coletivo Mãos – Arquitetura. Terra. Território: arquitetos e urbanistas Douglas Silveira Martini e Igor Nicolini;
  • Claudia Favaro – Conselheira Estadual do IAB.

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