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Racismo é fator dominante em pressão especulativa sobre quilombos urbanos

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Racismo é fator dominante em pressão especulativa sobre quilombos urbanos

Porto Alegre foi a primeira cidade brasileira a titular um quilombo urbano, o Quilombo da Família Silva, no bairro Três Figueiras, em 2009. Não é um fato surpreendente, visto que o Rio Grande do Sul também possui um grande número de comunidades quilombolas, com a 6ª maior concentração do país.

Esses dados, no entanto, contrastam com o fato de que Porto Alegre é considerada a cidade mais segregada do país, em termos raciais e socioeconômicos. Isso é expresso pela diferença de 18,2% entre o IDHM – Índice de Desenvolvimento Humano e Municipal – das populações branca e negra da Capital gaúcha, segundo um estudo divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2017, número superior à média nacional de 14,42%.

É, portanto, nessa realidade em que as diversas comunidades quilombolas de Porto Alegre estão inseridas, onde os territórios de resistência e afirmação do povo negro são historicamente objeto de cobiça.

Isso marcou e marca movimentações urbanas em décadas anteriores e agora. Foram inúmeros e gigantescos esforços para a obtenção da titulação do Quilombo da Família Silva e a atual pressão imobiliária em volta do Quilombo Kédi, no bairro Três Figueiras. Antes deles, a remoção dos moradores originais da antiga Ilhota, área entre os bairros Cidade Baixa e Menino Deus que a administração municipal do final dos anos 1960 quis “higienizar”, deu a medida de como uma elite governante enxerga a porção preta da população portoalegrense. Mesmo se tornando oficialmente um bairro da Capital em 2015, a lei que reconhecia os limites geográficos da Ilhota foi revogada no ano seguinte na nova divisão de bairros, sem nenhum anúncio ou justificativa.

São exemplos de como o racismo estrutural e institucional orientam as práticas de negligenciamento da população negra, principalmente na segregação socioespacial e discriminação racial na produção urbana, que marcaram os fenômenos acima: moradores removidos, expulsos de seus locais originários, pretos e pobres em sua maioria, nunca tiveram sua vontade respeitada, feridos em sua autodeterminação. Na prática, a essas populações, resta a precarização de seus locais de moradia, que contam com escassa infraestrutura urbana, bem como da oferta de serviços públicos.

Morosidade na titulação agrava situação de comunidades quilombolas

O bairro Três Figueiras, onde estão os quilombos da Família Silva e Kédi, é um exemplo claro e recente da dinâmica destas disputas econômicas que revelam tão claramente conflitos raciais. Tendo o metro quadrado mais caro de Porto Alegre, estas localidades, próximas a estruturas como escolas particulares de elite, um shopping center de alto padrão e um clube de golfe, enfrentam a pressão da especulação imobiliária, que têm suas intenções facilitadas pela flexibilização de normas urbanísticas pela atual administração municipal, orientada pelos interesses de empresas dos setores imobiliário e da construção civil.

Essas pressões produziram, muito recentemente, cenas assustadoras: a demolição de três residências do Quilombo Kédi na primeira quinzena de novembro, resultado da negociação individual da construtora CFL com moradores da comunidade, com a destruição conduzida por pessoal e equipamentos da própria construtora e com a anuência dos órgãos jurídicos da própria prefeitura.

É uma ação truculenta que em parte revela que esses agentes – da cobiça e da destruição – correm contra o relógio, ainda que o ritmo dos processos de titulação das comunidades quilombolas seja demasiado lento, levando, em média, 15 anos para serem concretizados. Ainda que o Quilombo Kédi seja um dos 2.840 quilombos certificados pela Fundação Cultural Palmares, apenas 1.803 deles já conseguiram iniciar o processo de regularização junto ao Incra e somente 205 comunidades efetivamente receberam o título de propriedade total ou parcial da área reinvindicada. Mesmo a Família Silva, como o primeiro quilombo urbano titulado do Brasil, ainda não obteve seu título integral, tendo vivido um processo muito similar ao do Quilombo Kédi.

Esse contexto, marcado pela prática de violência psicológica, moral e física contra as comunidades quilombolas, poderia começar a ser transformado por diretrizes de planejamento urbano mais inclusivas e conectadas à vida e aos anseios da população porto-alegrense em todas as suas expressões. Porém, o próprio processo de revisão do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental (PDDUA) de Porto Alegre, em andamento, já é marcado pela ausência de representantes e lideranças comunitárias em suas discussões e, consequentemente, carece de pautas culturais, econômicas, assistenciais e territoriais para comunidades indígenas e quilombolas.

Um planejamento participativo é crucial para atender ao desenvolvimento sustentável e permanência dessas comunidades, demandando atenção e intervenção para promover a equidade e inclusão desses grupos historicamente marginalizados. A eleição de novos membros para o Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano Ambiental (CMDUA), após cinco anos sem pleitos, resultado de pressões de entidades e da Justiça, poderá qualificar os esforços em tornar a revisão do plano mais justa para toda a população.

Colaboraram:

Nathália Gomes
Conselheira Estadual do IAB-RS

Sherlen Cibely Rodrigues Borges
Arquiteta e Urbanista, mestre em Planejamento Urbano e Regional

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