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Vitória de Milei na Argentina decreta fim da nova “onda rosa” na América Latina

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Vitória de Milei na Argentina decreta fim da nova “onda rosa” na América Latina

Para muitos, o resultado eleitoral na Argentina marcou o fim da nova “onda rosa”, que ficou marcada pelo avanço das esquerdas democráticas em países como Chile, Colômbia e Brasil. Quem é Javier Milei e como chegou à presidência?

Do goleiro ao comentarista midiático: a trajetória de um outsider em um país em crise

Crescido no bairro portenho de Villa Devoto, Javier Gerardo Milei frequentou instituições de ensino católicas e universidades privadas. Na transição para a idade adulta, foi goleiro do Chacarita Juniors, um pequeno clube de futebol da Província de Buenos Aires, atualmente na Segunda Divisão.

Em fins da década de 1980, Milei testemunhou os anos de hiperinflação do governo de Raúl Alfonsin, também marcado por uma conturbada transição para a democracia após a derrota da Junta Militar na Guerra das Malvinas de 1982. O cenário econômico caótico o teria motivado a iniciar os estudos em economia na Universidade de Belgrano. Sua carreira na área começou em 1992 na instituição que ele prometeu extinguir durante a campanha eleitoral: foi estagiário no Banco Central, de onde foi dispensado em 1993.

Durante os anos 90 e 2000, o economista atuou em instituições ligadas ao mercado financeiro, além de ter sido consultor de organismos como o Grupo de Política Econômica da Câmara de Comércio Internacional. Defendendo o livre mercado, a privatização de empresas públicas e a redução das atribuições do Estado, Javier Milei falava a mesma língua do neoliberalismo dos anos 90, em especial na sua vertente austríaca criada por Friedrich Hayek. Sua ascensão em meio ao mundo das finanças aconteceu durante a hegemonia incontestável do Consenso de Washington, cujos “mandamentos” foram seguidos à risca pelo então presidente argentino, Carlos Saúl Menem (1989-1999).

Por estar alinhado com as diretrizes do governo argentino e ter alcançado certo reconhecimento no mundo empresarial, Milei se aproximou de personalidades da cena política. Ele foi assessor econômico do general Antonio Domingo Bussi, que foi eleito deputado em 1999, em que pese o seu indiciamento por crimes contra a humanidade cometidos durante a Ditadura Militar argentina (1976-1983). 

Presença cada vez mais frequente em congressos, conferências e emissoras de rádio, Milei também desempenhou a função de professor em faculdades de economia e publicou livros. Obras como Lecturas de Economía en tiempos de Kirchnerismo e Desenmascarando la mentira keynesiana. Keynes, Friedman y el triunfo de la Escuela Austríaca reúnem críticas às políticas econômicas intervencionistas adotadas pelos presidentes peronistas que ocuparam a cadeira de Bernardino Rivadavia (primeiro presidente da Argentina) após a crise econômica de 2001, sobretudo o casal Kirchner.

Na década de 2010, Javier Milei se tornou ainda mais conhecido dos argentinos graças às participações em programas televisivos e de rádio. O fato de ter tido um programa de rádio facilitou a difusão do seu nome de La Quiaca a Ushuaia e entre um público ávido por notícias e programas radiofônicos, como motoristas de táxis, aplicativos, caminhões etc. Milei encerrou o ano de 2019 entre as pessoas mais influentes da Argentina, segundo a revista Notícias. No entanto, ainda lhe faltavam setores da sociedade imunes ao seu discurso ultra liberal. Este obstáculo foi superado com ajuda da pandemia de Covid-19.

La Libertad versus “La Cuareterna”

Em março de 2020, após a primeira morte por Coronavírus na Argentina, o então presidente Alberto Fernández colocou o país em quarentena. Inicialmente previsto para ser temporário, o lockdown argentino foi o mais longevo do mundo: os seus mais de 300 dias de medidas de restrição renderam o apelido de “Cuareterna” (“Quarentena eterna”, em tradução livre) por parte dos adversários do governo.

Já sofrendo com a elevada inflação e a desvalorização do peso, a economia do país viria a ser duramente golpeada pela paralisação de vários setores econômicos. Os níveis de pobreza dispararam e as ajudas emergenciais para a população necessitada fizeram o gasto público atingir o nível do Aconcágua. 

Diante desse cenário, Javier Milei alcançou o público adulto e jovem dos grandes centros urbanos do país, sobretudo Buenos Aires e Córdoba. Graças a uma boa dose de marketing político e de uso das redes sociais, Milei conseguiu angariar um número expressivo de seguidores mês a mês. Seus discursos em torno do conceito de liberdade eram usados para condenar as políticas econômicas intervencionistas de Alberto Fernández. E foi realizando manifestações em ruas e praças de Buenos Aires e fazendo muitas aparições em redes sociais que ele se postulou ao cargo de Deputado em 2021.

Com um discurso anti-política “contra tudo e todos”, o economista que virou celebridade atraiu um eleitorado ávido por reformas econômicas e incomodado com casos de corrupção. Para alguns, “el loco”, como era apelidado, se tratava do “Bolsonaro argentino”. Outros preferiam associá-lo a Donald Trump, outro outsider que acumulou capital político no meio empresarial e midiático antes de ingressar na política.

Foi relativamente fácil para Milei se colocar como um candidato outsider, de fora, ou seja, não corrompido pelas artimanhas e negociatas do poder. Seu partido La Libertad Avanza o lançaria na próxima eleição presidencial em 2023. Para que esse objetivo fosse alcançado era preciso também conquistar as províncias argentinas.

Entre tapas, beijos e Inteligência Artificial: uma campanha pioneira

Como em todas as eleições no país, a de 2023 esteve marcada por acusações, críticas contundentes, ataques pessoais e xingamentos – inclusive entre Patricia Bullrich e Javier Milei. Embora ambos candidatos tenham disputado votos no espectro político da direita argentina de forma agressiva, eles se aliaram para enfrentar o candidato governista Sergio Massa. Até aí, nenhuma novidade: “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”.

No entanto, as eleições presidenciais argentinas foram pioneiras no uso da Inteligência Artificial. Fazendo uso da técnica de deepfake (criação de vídeos e áudios falsos por meio de inteligência artificial), os candidatos tentaram convencer os indecisos que o seu rival era a pior opção para o país. A campanha de Massa, inclusive, divulgou uma propaganda em que a neoliberal Margaret Thatcher, falecida em 2013, aparecia ordenando o ataque ao navio argentino General Belgrano, durante a Guerra das Malvinas. Isso para relembrar o eleitorado que Milei não via a questão do arquipélago como relevante e que ele admirava a gestão liberal da ex-Primeira Ministra da Inglaterra.

Apesar de afirmações extremistas e polêmicas durante a campanha – ou talvez graças a elas? -, Milei conseguiu vencer Sergio Massa no segundo turno com o apoio de Patricia Bullrich. A ex-Ministra de Segurança de Mauricio Macri lhe trouxe o voto de uma direita tradicional que tem a segurança pública como sua principal bandeira. No entanto, a vitória de Milei não pode ser entendida somente a partir dos seus feitos na campanha e antes dela, mas também dos erros do próprio governo argentino.

A rejeição dos argentinos ao presidente Alberto Fernández era tão elevada que ele nem sequer se postulou para a reeleição. A opção recaiu sobre aquele que exercia o cargo de Ministro da Economia, Sergio Massa. 

O responsável pelas finanças do país tentou se justificar dizendo que ele não era o responsável pela situação do bolso dos argentinos. Covid-19, guerra na Ucrânia, uma seca histórica e um acordo feito por Mauricio Macri com o FMI foram alegados pelo Ministro. Mas a situação da economia empurrou a maioria da população de 20 das 23 províncias argentinas para o lado de Milei e Bullrich. O governista foi atingido pelo “voto de castigo” inclusive na província de Santa Cruz, reduto eleitoral de Cristina Kirchner.

“Del dicho al hecho hay un gran trecho”: e agora, Milei?

O ditado espanhol é revelador das primeiras medidas adotadas por Javier Milei. Entre o dito na campanha eleitoral e os feitos de governo, há uma grande diferença. Se na campanha, o economista disse que se recusaria a ter relações com o Brasil e a China, na Casa Rosada Milei mandou uma carta a Xi Jinping solicitando a renovação de um acordo cambial assinado por Fernández e outra para Lula, convidando-o para sua posse. Durante a campanha, Milei bravejou contra o Mercosul, mas agora eleito ameniza o tom e vê o bloco ser ampliado com o ingresso da Bolívia. A realidade das circunstâncias e de quem não tem maioria no Congresso têm falado mais alto que a bravata eleitoreira.

Por outro lado, parte de suas promessas para ajustar as contas do país já começaram a ser colocadas em prática. O presidente já anunciou corte de gastos, demissões de empregados de repartições públicas, eliminação do congelamento de preços de alimentos, remoção gradual de subsídios e corte de benefícios sociais a quem participar de manifestações que cortem ruas ou rodovias. 

Outro ponto que gera inquietação é a possibilidade de Milei endossar políticas de flexibilização das penas impostas a militares e agentes de segurança pública condenados por violação dos direitos humanos durante a Ditadura no país. Filha e sobrinha de militares, a vice-presidente Victoria Villarruel prometeu revisar a política de memória e direitos humanos, incluindo as indenizações às vítimas da repressão estatal. Entidades de direitos humanos, como as Abuelas de Plaza de Mayo, anunciaram que não permitirão um retrocesso desta magnitude e que lutarão para que a Argentina continue sendo uma referência em direitos humanos por ter levado os membros da Junta Militar ao banco dos réus, além de ter julgado e condenado torturadores. 

Se conseguirá ou não implementar as suas políticas, só o tempo dirá. Porém. Se conseguir melhorar a situação econômica e amenizar a insegurança na Argentina, existe a possibilidade de retorno de presidentes de direita em países que farão eleições em 2024, como Peru, México e Venezuela. Agora só resta acompanhar como os argentinos vão lidar com mais esse momento difícil de sua história, que é tão dramática e passional quanto um tango de Carlos Gardel.


Sobre o autor do artigo:

Viajante mochileiro, Bruno Félix Segatto é docente na Casamundi e acaba de voltar da Colômbia. Mestre em História pela UFRGS, é professor de História, Filosofia e Sociologia na rede privada de ensino gaúcha. Desenvolve pesquisas e possui artigos e capítulos de livros publicados nas áreas de história política e cultural latino-americana. Também realiza estudos nas áreas de Fotografia, Arte, Arquitetura e Literatura latino-americana.

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