Reportagem

Anvisa vai investigar uso de proxalutamida e rever normas de importação para pesquisas após denúncia do Matinal

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Anvisa vai investigar uso de proxalutamida e rever normas de importação para pesquisas após denúncia do Matinal Experimento irregular com o fármaco foi realizado em 2021 com pacientes com covid no Hospital da BM de Porto Alegre | Foto: Osmar Nólibus / BM

Agência vai produzir um dossiê sobre o uso da droga no País, além de instaurar um processo administrativo para investigar eventuais infrações sanitárias no caso

Nesta quinta-feira, uma ampla apuração sobre o uso irregular de proxalutamida em testes com seres humanos foi determinada pela Anvisa, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária. A decisão segue a esteira de investigações abertas por órgãos públicos após a revelação do Matinal de que experimentos com o remédio foram realizados em março no Hospital da Brigada Militar de Porto Alegre, em cerca de 50 pacientes hospitalizados com Covid-19.

Conforme nota publicada pelo órgão, foram instaurados um dossiê de investigação com o objetivo de obter mais informações sobre os produtos importados e suas condições sanitárias, um processo administrativo para apurar eventuais infrações cometidas pelo importador do fármaco, o médico endocrinologista Flávio Cadegiani, coordenador dos experimentos com a droga, e a notificação dos serviços de saúde que participaram dos testes clínicos irregulares. Comprovadas violações à legislação sanitária federal, o médico pode ser multado em até R$ 1,5 milhão e ter sua clínica interditada.

O Ministério Público Federal e a própria Brigada Militar já apuram o caso. Agora, três departamentos da Anvisa estarão mobilizados para apurar potenciais infrações sanitárias e tomar medidas que previnam qualquer risco iminente à saúde pública por conta da importação do remédio. A medida inclui a produção de um dossiê sobre o uso da proxalutamida no país inteiro – não só Porto Alegre. Outros 12 hospitais e centros clínicos brasileiros também rodaram testes com a droga entre agosto de 2020 e março deste ano, sob a coordenação de Flávio Cadegiani. Na capital gaúcha, o médico infectologista Ricardo Zimerman também foi um dos coordenadores do teste irregular, realizado com o aval do Comando da Brigada Militar gaúcha.

Brecha regulatória

“Em análise inicial, os levantamentos apontam para assimetrias de informação entre as importações requeridas e as pesquisas científicas aprovadas no âmbito do sistema CEP/CONEP”, diz a nota. Na época em que o medicamento foi importado, só havia autorização da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) para uso de proxalutamida em pesquisas científicas, ou seja sem fins regulatórios, em uma clínica de emagrecimento em Brasília que pertence a Cadegiani, mas o medicamento acabou distribuído para hospitais do Amazonas, Rio Grande do Sul e Santa Catarina a revelia dos órgãos reguladores. A agência sanitária não informou quantas unidades do medicamento entraram no País.

Conforme planilha enviada pelo próprio Flávio Cadegiani à imprensa, entre os dias 29 de janeiro e 18 de fevereiro, o médico importou 25 remessas de proxalutamida sem especificar o nome da droga nos registros de importação dos pedidos – todos passaram pela anuência da Anvisa, mas a agência não respondeu à reportagem se inspecionou ou não essas remessas. Na modalidade pela qual a droga entrou no País, não há previsão de limites para a quantidade de remessas a serem permitidas.

Os medicamentos chegaram ao Brasil apenas com a indicação de serem “anti-androgênicos”, classe farmacológica da proxalutamida à qual também pertencem outros medicamentos aprovados para uso no País. Com a descrição genérica, a droga teria passado despercebida pelas autoridades.

Tanto que, inicialmente, a Anvisa havia afirmado ao Matinal não ter autorizado a importação de proxalutamida na época do experimento no HBMPA, mas depois voltou atrás e informou à imprensa que houve sim a entrada da droga no País para um estudo sem fins regulatórios, o que dispensa a pesquisa de uma fiscalização rigorosa da agência. 

De todo modo, com ou sem fins regulatórios, é necessária a apresentação de um parecer de um Comitê de Ética em Pesquisa no ato da importação. Como não havia um parecer que autorizasse o uso da proxalutamida no hospital de Porto Alegre para o mês de março, a droga veio parar na capital gaúcha de forma irregular. Em entrevista à Band RS, o coordenador da Conep, Jorge Venâncio, confirmou que o estudo realizado no HBMPA foi “inteiramente irregular”.

“Isso é intermediado pela Conep. Ou seja: a Anvisa aprova a entrada, dado que foi aprovado na CEP/Conep um determinado protocolo e, daí, se não é cumprido o protocolo, isso é uma infração de ética em pesquisa e, em consequência disso, também é uma infração sanitária”, analisa o médico sanitarista Cláudio Maierovich, ex-presidente da agência. À redação, Cadegiani inicialmente afirmou que teria autorização para uso da droga em âmbito nacional, o que foi desmentido pela Conep, dado que cada centro de pesquisa precisa de um parecer ético próprio.

Contatado novamente pela reportagem, Cadegiani não quis dar entrevista. Já a BM disse que só irá se manifestar novamente após concluídas as investigações.

Revisão na lei

Para além das apurações, a Anvisa também informou que irá rever a resolução 172/2018, base regulatória usada por Flávio Cadegiani para importar o medicamento. O texto define os procedimentos para a importação e a exportação de bens e produtos destinados à pesquisa científica ou tecnológica envolvendo seres humanos.

Prevista no texto, a modalidade “remessa expressa”, utilizada por Cadegiani, requer “rapidez no translado e recebimento imediato por parte do destinatário”. Com fiscalização mais frágil, a alternativa permitiu a entrada da droga sem uma avaliação rigorosa do destino que seria dado às remessas. “A Anvisa, digamos, autoriza a entrada no País, uma vez aprovado pelo sistema CEP/Conep. Mas depois disso, a Anvisa não controla mais o destino. Supõe-se que está sendo cumprido o protocolo”, explica Maierovich.

Em relatório que amparou a decisão unânime do colegiado da agência pela instauração das investigações, o diretor da Anvisa e advogado Alex Campos destacou que a boa fé do importador é presumida no ato da chegada do medicamento ao País e que “cabe ao importador a obrigação pelo cumprimento e observância das normas regulamentares e legais”. Isso inclui o respeito às normas da Conep, que regulam a análise ética de todos os estudos científicos ou clínicos que envolvem seres humanos.

Maierovich afirma que a resolução 172 facilitou a importação de material para pesquisas não regulatórias, solucionando um problema crônico na época em que foi presidente, entre 2003 e 2006. No entanto, apesar de legal, o médico sanitarista diz ter achado estranha a liberação de importação facilitada para instituições não credenciadas no CNPq, caso do CNPJ usado por Cadegiani para trazer a proxalutamida ao País. Trata-se da clínica particular do médico, que ocupa três salas de um centro clínico de Brasília. A empresa tem dois sócios: Cadegiani e a mãe, que não é médica, mas advogada da União. 

O relatório destacou ainda o papel de reportagem do Matinal, que revelou os experimentos com proxalutamida no HBMPA. “Tais informações são temerárias no cenário em que o Sistema CEP/CONEP tem a função de proteger os participantes de pesquisa, por meio da avaliação ética de toda e qualquer pesquisa que possua a participação direta ou indireta de seres humanos no Brasil. Portanto, produtos passíveis de regularização na Anvisa e usados em seres humanos sem um protocolo de estudo bem definido e aprovado pelo órgão competente, que garanta, minimamente, a segurança dos sujeitos incluídos no estudo, podem pôr em risco a saúde e, até mesmo, a vida dos indivíduos expostos”, escreve Campos.

Leia na íntegra a deliberação do colegiado da Anvisa, que usou a reportagem do Matinal como base.

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