Reportagem

Arquitetos criticam construção de túnel pelo Colégio Farroupilha

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Arquitetos criticam construção de túnel pelo Colégio Farroupilha De acordo com o colégio, o túnel vai facilitar a mobilidade de moradores e de quem circula no entorno da escola. Crédito: Colégio Farroupilha / Divulgação

Especialistas entendem que obra privilegia fluxo de carros sobre deslocamento de pedestres; colégio não quis comentar

O trânsito na Rua Carlos Huber, no bairro Três Figueiras, está interrompido. Desde janeiro e até, pelo menos, o começo de março, um túnel está sendo construído no local. Bancada pelo Colégio Farroupilha, a passagem tem por objetivo ligar o estacionamento da instituição à escola. Em um curto anúncio da intervenção, o Farroupilha citou que o túnel contará com espaço de convivência ao público interno e facilitará a mobilidade na região.

No entanto, ainda que seja uma obra de uma empresa privada, o fato de ela ocorrer em um espaço público e sem debate aprofundado de suas consequências suscitou críticas entre especialistas. Uma das primeiras partiu do urbanista Anthony Ling, no Twitter, num conteúdo que depois deu origem a um artigo publicado em GZH. Segundo ele, o túnel estimula ainda mais o fluxo de carros na região, por oposição a uma política que privilegiaria o tráfego de pessoas.

Destacando que o túnel vai atravessar uma via com apenas 10 metros de faixa dedicada ao tráfego de veículos, Ling comparou a obra à de “inúmeros viadutos que destruíram o tecido urbano da cidade”. 

“É uma obra feita para o carro ocupar o espaço público térreo – que é o mais nobre e que deveria ser o mais seguro de todos – em uma via local, estreita, e botando pedestres e crianças debaixo da terra. O conceito de túnel para pedestres está ultrapassado em urbanismo. Quem deve ter prioridade de andar na rua, em frente a um colégio?”, questiona Ling, em entrevista ao Matinal.

Ex-aluno do Farroupilha, o urbanista afirma que a obra não enfrenta as causas de congestionamento na região. “O bairro é regulado para baixa densidade, impedindo que haja muitos alunos no seu entorno e aumentando distâncias de deslocamento. Praticamente nenhum aluno, mesmo no Ensino Médio, usa ônibus ou bicicleta, e os pais insistem em deixar os filhos sem descer do carro, bem em frente à porta da escola, sendo também relutantes para deixar seus filhos em ruas adjacentes, mesmo sendo um dos bairros mais seguros da cidade”, observa.

Chamando atenção para os muros altos da escola, que provocariam uma sensação de insegurança despropositada, Ling entende que o Farroupilha poderia tranquilizar os pais quanto a embarques e desembarques em pontos próximos. “Uma escola de elite, em tese, deveria ser chave no papel de educação, conscientização e mudança de hábitos (ou vícios) da sociedade, começando por atacar as causas dos problemas na sua casa, na sua cidade. Este túnel sinaliza que o ‘conforto’ próprio está acima disso”, conclui.

IAB aponta “shoppinização” do ambiente escolar

A rua Carlos Huber deve ser reaberta para o tráfego em março. Crédito: Colégio Farroupilha / Divulgação

A realização das obras exigiu o bloqueio temporário da circulação de veículos na rua Carlos Huber. O trânsito local tem sido desviado para a rua Luiz Voelcker, para quem transita no sentido Centro-Bairro; e para a rua Balduino Roehrig, para quem trafega no sentido Bairro-Centro. Ambas as ruas passam a ser de mão dupla no trecho entre a rua Alfa e a Carlos Huber, que deverá ser reaberta para o tráfego em março.

De acordo com Paula Motta, co-presidenta do departamento gaúcho do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-RS), o túnel subterrâneo impacta o entorno do colégio, que não teria fornecido informações suficientes para justificar a intervenção. “Estão fazendo reformas em um bairro predominantemente residencial e que já está passando por mudanças massivas. A Carlos Huber sempre teve um grão residencial unifamiliar, mas está mudando com novos empreendimentos, como um prédio altíssimo de uma incorporadora. Seria importante uma análise da mesozona, com um recorte maior, ao invés da microescala ao redor do colégio”, argumenta.

A arquiteta e urbanista sugere também que o projeto tem um caráter carrocêntrico que corre na contramão de valores que a instituição gostaria de assumir para si. “Parece que não existem outras pessoas na rua, apenas alunos. É também curioso que uma escola tradicional, que tem empregado visões progressistas em educação, que tem pregado a sustentabilidade, negligencie essa questão da mobilidade. Ela não promove outros tipos de modais, a não ser o carro, sendo que o Farroupilha está muito próximo da Protásio Alves, que dispõe de vasta oferta de ônibus”, observa a co-presidenta do IAB-RS.

Paula Motta questiona, ainda, que os equipamentos escolares embarquem em um processo de “shoppinização”. “É algo que vem em benefício dos alunos? Mas que benefício é esse, de atrelar ao consumo os espaços internos de uma escola?”, indaga.

Professora vê “oportunidade perdida” 

Na opinião da professora Camila Fujita, que ministra aulas sobre urbanismo na Escola Politécnica da PUCRS, o Colégio Farroupilha perdeu uma oportunidade de aprimorar seu entorno a partir da opção em não fazer uma intervenção que incluísse mais as redondezas da instituição. Conforme ela, a opção de fazer uma ligação interna entre colégio e estacionamento “é uma forma de não vivenciar” a própria cidade. “Isso é uma contradição do próprio sentido da cidade que é ver a pluralidade. Só nos espaços públicos que a gente pode ver a cidade”, argumenta.

A professora cita o fato de que a obra seja bancada logo por um lugar de ensino. “Sendo uma escola, você não educa só pelo conteúdo, pela didática, mas pelo espaço que está sendo construído. Nos espaços educadores, as cidades em si podem educar seus moradores a serem mais tolerantes e fraternos através de seus espaços públicos.”

Quanto à finalidade da obra, a professora lembrou que há décadas se discute – e se critica – a priorização dos carros em detrimento a outras formas de mobilidade. Ainda que haja demanda de veículos na volta do Farroupilha, ela enfatizou a falta da comunicação com a rua, o que causa impacto na própria sensação de segurança ao redor: “Contemporaneamente avançamos neste debate da micromobilidade, da mobilidade mais ativa, de termos um contato maior do espaço da cidade onde as pessoas possam interagir de uma forma melhor, de maneira a trazer mais segurança do próprio bairro”, afirma. “Seria uma presença mais positiva para o colégio no bairro.”

Camila reconheceu que Porto Alegre ainda tem bastante influência políticas de desenvolvimento rodoviaristas e admitiu que, apesar de avanços na discussão, o debate urbanístico precisa ser mais massificado na população. “Quem tem oportunidade de viajar, adora aquela realidade de uma cidade na Europa, nos Estados Unidos, na Austrália, onde pode fazer as coisas com mais sensibilidade a pé. Onde tem mais interesse, onde se vive o cotidiano em outra escala. Mas às vezes ela não percebe aqui, porque a cidade foi construída dentro de uma outra lógica”, compara. “É algo que demora um tempo para as pessoas perceberem isso no cotidiano delas.”

Farroupilha opta por não se manifestar

Contatado pelo Matinal, que apurou que a ideia de construir o túnel existe há pelo menos dois anos, o Colégio Farroupilha preferiu não se manifestar. A reportagem também questionou se a comunidade escolar foi ouvida e sobre quem fez o projeto, mas não obteve resposta. O colégio informou que o projeto inclui a criação de um “amplo ambiente de convivência a fim de proporcionar maior segurança e conveniência aos estudantes, às famílias e aos educadores”.

A Secretaria do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (SMAMUS) informou que o projeto teve Estudo de Viabilidade Técnica (EVU) e Projeto Geométrico Estrutural aprovados. A obra teve ordem de início autorizada com fiscalização dos técnicos da Secretaria de Obras e Infraestrutura.

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