Reportagem

Bombas recuperadas pós-enchente evitaram nova inundação de Porto Alegre

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Bombas recuperadas pós-enchente evitaram nova inundação de Porto Alegre Vias e prédios do Menino Deus, como a Getúlio Vargas (na foto), só alagaram porque os sistemas de proteção falharam. Foto: Julio Ferreira/PMPA

Quando o Guaíba passou a avançar sobre Porto Alegre no dia 3 de maio, a capital tinha em funcionamento apenas quatro de 23 casas de bomba – estruturas que servem para expulsar a inundação da área urbana. Dezenas de bairros em regiões baixas da cidade foram alagados. Em regime de urgência, o Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) conseguiu ligar outras cinco estações de bombeamento ao longo dos 13 dias seguintes. Nesta quinta-feira (16), nove estão em operação.

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Os consertos, no entanto, ocorreram somente depois que a cidade já tinha parte importante de sua área alagada – sem contar os alertas anteriores de previsão de cheia no Guaíba, onde iriam desaguar as águas que, dias anteriores, haviam devastado cidades inteiras.

A evidência sobre a possibilidade de evitar o alagamento, para o engenheiro ambiental Iporã Possantti, pesquisador no Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da UFRGS, deu-se justamente na comparação com os dois picos do Guaíba registrados neste ano. No primeiro momento, quando o ápice de altura do corpo d’água foi anotado, uma parte enorme da cidade foi inundada: do Sarandi, no extremo nordeste, passando pela zona norte mais próxima à Freeway, descendo pelas quadras próximas à avenida Castelo Branco, no Centro Histórico e bairros próximos como Cidade Baixa, Praia de Belas e Menino Deus.

Com o sucessivo restabelecimento das estações de bombeamento de águas pluviais (EBAPs) pelo Dmae, o repique do nível do Guaíba não provocou tamanha inundação. Houve até mesmo recuo do alagamento em uma faixa que começa pelo Menino Deus, passa pela Cidade Baixa e chega às ruas da parte sul do centro, nas vias perpendiculares às ruas Demétrio Ribeiro e Washington Luís.

“O termo técnico para a área protegida pelos diques é ‘pôlder’, são vários na cidade”, explica o engenheiro. O pôlder Praia de Belas, em referência à avenida homônima que cruza essa região, é exemplar dessa hipótese.

“Isso deixa claro que o nível do Guaíba não foi o fator determinante para o colapso. Porque a água estava alta na segunda cheia, no repique, quando o pôlder Praia de Belas não falhou. Então a tese de que a inundação da cidade era inevitável, em razão da magnitude da cheia, fica muito enfraquecida”, afirma. Esse pôlder é limitado, ao norte, pela avenida Ipiranga.

Menino Deus, Praia de Belas, Cidade Baixa, Centro Histórico, 4º Distrito: falhas no sistema de proteção

A região teve a EBAP 12, que fica no Parque Marinha do Brasil, restabelecida nos últimos dias. Possanti fotografou a casa de bombas em duas ocasiões: no dia 4 de maio – anterior ao ápice do Guaíba, com água ao redor da construção – e no dia 15, com a instalação de gerador de energia e a casa seca, apesar do nível da cheia estar em 5,21m naquele momento. Também secou a região: se antes o alagamento chegou às ruas internas do bairro, inundando até mesmo o Hospital Mãe de Deus, o restabelecimento fez com que mesmo a região do Estádio Beira-Rio, a poucos metros da orla, se livrasse da inundação.

Limpeza da rua João Alfredo, na Cidade Baixa, na quarta-feira (15). Foto: Cesar Lopes/PMPA

O mesmo se deu com o pôlder Centro, logo ao norte da Ipiranga. O bairro Cidade Baixa, que fica nessa mesma área de proteção, é um exemplo. A água avançou ruas distantes do Guaíba na semana passada, chegando à metade das quadras entre as ruas José do Patrocínio e Lima e Silva, mas a EBAP 16, na Rótula das Cuias, foi religada na terça-feira (14). A inundação recuou consideravelmente. Na quarta-feira (15), mesmo a rua João Alfredo já se encontrava seca. A Washington Luís, no centro, não está mais submersa. Essa região foi separada por um dique provisório das outras partes do centro, no dia 10 de maio, pelo Dmae.

A história é outra na área norte do Centro Histórico – vias como Andradas, Sete de Setembro, Siqueira Campos e Mauá, com suas perpendiculares, seguem debaixo d’água. As casas de bomba 17 e 18, ambas próximas ao cais – uma na altura do Tribunal de Contas, outra próxima à rodoviária –, ainda não puderam ser religadas. Situação semelhante é verificada na região do 4º Distrito.

Segundo o Dmae, essas EBAPs são as mais difíceis. O departamento diz que as estruturas têm “um erro no projeto, erro estrutural”, que só pode ser consertado quando o nível do Guaíba descer, para que então possam ser acessadas com caminhões. “Por isso estamos religando as mais próximas, para tentar baixar a água e chegar lá”, informa a autarquia.

Dano humano e econômico é “gigantesco”

Na confluência de quatro rios, Porto Alegre tem algo como 40% de sua área construída em altitude muito próxima à cota de inundação do Guaíba. Essa foi a razão pela qual se ergueu, 33 anos depois da grande enchente de 1941, o Muro da Mauá – ele é parte de um sistema de proteção contra cheias que foi testado poucas vezes nas décadas seguintes.

A água só tocaria o muro e os diques do Guaíba em 2023 – duas vezes, em setembro e novembro. Depois veio a grande enchente de 2024, quando essa estrutura que resguarda a cidade colapsou. Por problemas de manutenção, a água entrou sobretudo pelas comportas desses sistemas – oficialmente chamados de estações de bombeamento de águas pluviais (EBAPs). Ou seja: a água não chegou a ultrapassar o muro e os diques, na maior parte da cidade, mas entrou pelos condutos subterrâneos.

O dano humano e econômico dessas falhas é “gigantesco” para o pesquisador. “Pessoas perderam seus bens, hospitais foram paralisados, pessoas sofreram profundamente, o aeroporto está paralisado, indústrias e comércios precisaram fechar as portas. Temos muitos envolvidos nessa rede de causas e consequências. Não é uma tragédia inevitável. Nós estamos lidando com um erro de operação do sistema”, diz Possanti.

Resgate da população do Sarandi teve base no Viaduto José Eduardo Utzig, no dia 5. Foto: Giulian Serafim/PMPA

No Sarandi, a água ultrapassou os diques por cima

Se o problema nos bairros mais próximos do Centro Histórico foi o mau funcionamento do sistema contra as cheias, devido a problemas de manutenção, a história foi outra no bairro Sarandi. O extravasamento do dique foi responsável pela inundação da região – não uma falha da estrutura, mas um alagamento maior do que o previsto pelo projeto da proteção. Em analogia, é como se a água passasse por cima do Muro da Mauá. O Sarandi não está próximo do Guaíba, mas do leito normal do rio Gravataí – suas ruas no limite norte ficam a 1,8 quilômetros do curso d’água.

“Tanto que houve uma mensagem assinada pela equipe do IPH alertando o risco gravíssimo e inédito de rompimento daquele dique. Porque esse sistema não é projetado para ter vertimento por cima. Trata-se de um galgamento, no termo técnico. Isso causa erosão e pode criar um vão. A gente viu que existiam máquinas trabalhando para tentar segurar aquela água que estava adentrando. Foi uma situação extremamente crítica que felizmente não resultou em rompimento”, diz Possanti.

Evitou-se, ali, um “desastre pior do dique”. Pois a inundação gradual, por cima do sistema ou pelos condutos subterrâneos, é suficientemente lenta para que a população saia a tempo. “Outra coisa é um rompimento de barragem, ou uma cabeça d’água, que chamamos de enxurrada. O rompimento de barragem é uma onda muito letal”, alerta o engenheiro.

Próximos passos

O Dmae diz que trabalha, nos próximos dias, para restabelecer a EBAP 13, que também fica no Parque Marinha do Brasil, ao norte da casa 12, na altura da Rua Comendador Rodolfo Gomes. Depois, a expectativa é religar até domingo as bombas 4 (na Voluntários da Pátria, próxima à intersecção com a Sertório) e as de número 6 (no entrocamento da BR-166 com a Freeway).

“Aí vamos avaliando caso a caso, pois, com o funcionamento delas e o nível do Guaíba baixando, a água vai escoar ao ponto que consigamos acessar as demais”, disse o departamento, em resposta à Matinal.

Das EBAPs restabelecidas, algumas agora trabalham com geradores movidos a diesel, e outras são ligadas na rede da CEEE Equatorial, a partir de manobras nos fios elétricos.

A empresa Bombas Sinos, segundo o Dmae, “faz parte da força-tarefa”. Ela foi citada, nesta quinta-feira, em reportagem do Intercept Brasil, por ter entre seus sócios um ex-funcionário da prefeitura que, por dois anos, foi o responsável pela fiscalização da companhia.

A Bombas Sinos é a fornecedora responsável pelos dois maiores contratos de manutenção do sistema de proteção contra enchentes desde 2016, e teve seu acordo com a prefeitura renovado em abril deste ano, com valor inicial de R$ 3,39 milhões e acréscimos que somam mais R$ 1,4 milhão para a empresa. Seu contrato com o município de Porto Alegre trata de “manutenção eletromecânica preventiva e corretiva em Equipamentos Industriais do Sistema de Proteção Contra Cheias de Porto Alegre, incluindo o fornecimento de materiais e peças de reposição, abrangendo as Estações de Bombeamento de Águas Pluviais e os 14 portões comportas do Cais Mauá e Avenida Castelo Branco”.

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