Câmara de Alvorada autoriza venda de área que abriga parque comunitário
Prefeitura prepara leilão de 389 lotes por R$ 18,3 milhões
A Câmara de Vereadores de Alvorada aprovou na semana passada, por nove votos a três, um projeto de lei que permite a venda de um loteamento no bairro Jardim Algarve. A prefeitura poderá leiloar 389 lotes por mais de R$ 18,3 milhões ao todo. A decisão não foi bem recebida pelos moradores que adotaram a área há anos e transformaram o espaço em um parque comunitário. Com cerca de 185 mil habitantes, Alvorada conta oficialmente apenas com um parque municipal, o da Lagoa do Cocão, no bairro Aparecida.
O terreno foi entregue à prefeitura como pagamento de dívidas por impostos devidos pela antiga proprietária, a Habitasul, e já está incorporado ao patrimônio público há mais de dois anos. Agora, a administração municipal, autora do projeto, prepara um edital para leiloar o espaço e investir o dinheiro arrecadado em obras na cidade. O processo, segundo o secretário da Fazenda, Planejamento e Orçamento, Marcelo Machado, deve levar cerca de 180 dias. “O leilão de imóveis, pela Lei de Responsabilidade Fiscal, só pode ser aplicado em investimento. Não pode entrar em custeio, pagamento de folha. Só obras novas”, explica.
O que incomoda a população vizinha à área verde é que, para eles, o lugar não é considerado um loteamento, mas um parque: o Parque da Solidariedade. O nome traduz o esforço de moradores que, há quase uma década, acolheram o espaço para preservá-lo, revitalizá-lo e transformá-lo em um ambiente agradável para a comunidade.
“Quando nós olhamos uma área verde, nós vemos uma floresta, um parque, um espaço para a cultura. Eles veem uma área verde e enxergam um shopping center, um mercado, prédio. A gente precisa mudar essa lógica e olhar a natureza de outra forma”, defende o artista visual Marcelo Chardosim.
Em 2021, a Habitasul apresentou à prefeitura um projeto de criação de um segundo parque na cidade, também no Jardim Algarve. Ele seria desenvolvido como uma área institucional em contrapartida a novos empreendimentos locais. De acordo com o secretário da Fazenda, o estudo de viabilização urbanística e econômica ainda não foi concluído. O Matinal entrou em contato com a Habitasul, que não retornou até a publicação desta reportagem.
Degradação ao longo do tempo
A área preservada pela comunidade deveria ser destinada a habitações ainda nos anos 1980, o que acabou ocorrendo em setores anexos, também de propriedade da Habitasul e onde vive parte das pessoas que adotaram o “parque”. Porém, esse lote em questão nunca foi transformado oficialmente em um lugar de convivência. Pelo contrário. Nos últimos anos, o local foi degradado, virou depósito irregular de lixo e até local de execuções de vítimas do crime organizado.
A dona de casa Maria Motta, de 63 anos, diz ter testemunhado assaltos com frequência nos últimos 20 anos. Moradora do bairro desde 2004, ela afirma que diversas vezes pleitearam pelo cercamento do local para evitar roubos e furtos, além de outras intervenções do poder público que dessem vida ao lugar. A saída, ela percebeu com o tempo, seria agir com as próprias mãos. “A gente limpou, botou banco, plantou árvores para evitar erosão”, conta.
As ações contribuíram para reduzir outro problema grave: incêndios. Não foram poucos os casos de fogo, segundo moradores, iniciado pelo mau uso da área que terminaram com mortes de animais da fauna local, como lagartos, gambás, cobras e tatus. Por isso, Maria gostaria de um destino consciente para o local, que não exterminasse suas particularidades. “Tem maravilhas dentro desta mata, figueiras imensas, pedras enormes para limpar e fazer trilha.”
Solidariedade e cultura
Foi em 2015 que o grupo de moradores decidiu expor a indignação com criatividade e fazer intervenções artísticas e educativas no local. Através de mutirões de limpeza e plantio, com apoio pontual da prefeitura, a comunidade criou ecopontos para o descarte correto dos resíduos, mapeou fauna e flora e despertou a conscientização de quem via ali apenas um terreno baldio.
“O projeto do parque é de educação ambiental. Precisa mudar a mentalidade para tirar de Alvorada esse estigma de violência. A gente está tentando mudar essa visão através de um grande parque, que seja de nível estadual e nacional”, sublinha Chardosim.
A terapeuta ocupacional Viviane Gomes, 35 anos, fala que, antes mesmo de se mudar para o bairro, já conhecia a beleza da vegetação da região. Ela relata que os familiares colhiam marcela e outros chás e plantas frutíferas por toda a extensão do que depois passou a conhecer como Parque da Solidariedade. “Hoje não tem metade do que existia antes”, lamenta.
Para contribuir com a proposta de tornar o lugar mais acolhedor, ela colaborou no atendimento social de moradores em situação de vulnerabilidade. A criação de uma horta comunitária fez parte do trabalho desenvolvido, além de atividades a céu aberto, como teatro, cinema e exposições. Para Viviane, a iniciativa mostra que é possível agir para transformar o lugar onde se vive.