Câmara sedia evento antivacina organizado por vereadora bolsonarista
Fernanda Barth (PL) usou TV Câmara e sala do parlamento para transmitir seminário de quatro horas que atacou vacinas usadas contra a covid-19 e promoveu conspirações sobre a pandemia
Médicos e ativistas ligados ao movimento antivacina na Europa e nos Estados Unidos participaram de um seminário organizado pela vereadora bolsonarista Fernanda Barth (PL) na tarde desta quinta-feira, 3 de agosto, na Câmara Municipal de Porto Alegre. O evento foi transmitido pela TV Câmara e divulgado por Barth como uma reunião pública “em defesa da autonomia médica”. Na prática, foi um rally antivaxxer.
Ao todo, sete profissionais de saúde estrangeiros deram depoimentos sobre como medicamentos comprovadamente ineficazes contra a covid-19 – como a ivermectina ou soluções de iodo – foram descartados por governos, pela mídia e pela indústria farmacêutica para darem lugar a imunizantes caros e mortais distribuídos à população. Veiculadas com tradução simultânea, as falas comportaram teses de que esses medicamentos foram descartados por supostos interesses financeiros do bilionário Bill Gates ou de uma agenda de “digitalização da humanidade” por meio de passaportes vacinais.
Ao Matinal, Barth negou que o evento tenha sido antivacina, ainda que ao longo do encontro os convidados tenham atribuído à imunização abortos, mortes e sequelas, entre outros supostos efeitos adversos, que não têm evidências científicas que os amparem. “Muitos trabalhos foram produzidos nos três últimos anos e estão sendo debatidos mundialmente”, afirmou a vereadora, que defendeu o currículo e as pesquisas dos ativistas convocados. “É dever dos legislativos trazerem informações novas e consistentes sobre o tema.” A vereadora foi questionada sobre o fato de as teses propagadas como verdade no seminário já terem sido desmentidas ao longo da pandemia.
Um dos pesquisadores referenciados por Barth, o médico cardiologista Peter McCullough, disse no seminário que vacinas podem causar autismo, afirmação que repete uma fraude gestada nos anos 90 por um médico inglês que falsificou dados para tentar lucrar com indenizações que seriam pagas por farmacêuticas a mães de crianças que seriam autistas. “Crianças estão recebendo de três a seis vacinas diferentes de uma única vez, e os dados sugerem que isso não é seguro”, disse o norte-americano ao mostrar um slide sobre como a imunização infantil avançou dos anos 60 em diante. “Há estudos ligando a ‘hipervacinação’ ao desenvolvimento de autismo.” Essa afirmação não encontra respaldo em pesquisas científicas sérias.
O cardiologista afirmou ainda haver uma associação entre o transtorno e a transexualidade, ligando-os à vacinação, o que também não tem base científica. “A tendência alarmante é o crescimento da comunidade LGBT, na qual, em particular crianças transexuais, elas têm autismo”, disse McCullough.
A transmissão foi ocultada pelo canal no YouTube da Câmara Municipal logo após o seu término, mas o vídeo completo ainda pode ser assistido em um tuíte da influenciadora de extrema direita Karina Michelin no X, antigo Twitter, ou no Facebook da vereadora Fernanda Barth.
Autonomia médica
Nas redes sociais da vereadora Fernanda Barth, o seminário foi divulgado como sendo destinado à “defesa da autonomia médica”. Na abertura do evento, a vereadora Comandante Nádia (PP) ressaltou a importância de projetos de lei propostos por ela, como um que barra o uso de “passaporte vacinal” na capital, e outro que determina que postos de saúde porto-alegrenses instalem placas que “alertem” pais que as vacinas infantis para covid-19 não são obrigatórias.
O presidente da Câmara dos Vereadores, Hamilton Sossmeier (PTB), também foi à abertura da reunião. “Mesmo com as agendas corridas aqui da presidência da Câmara, não poderia deixar de participar da abertura desta importante reunião que debaterá a defesa do nosso bem mais precioso: a saúde!”, disse o presidente da Casa Legislativa. “É uma alegria ver esta Casa se tornar palco de um debate tão importante quanto a liberdade médica e que vai reunir nomes expoentes da medicina do mundo inteiro.”
Em seguida, minutos após a fala de Sossmeier, o médico intensivista norte-americano Pierre Kory iniciou sua palestra afirmando que “interesses financeiros massivos” ameaçaram o uso off-label de remédios do kit covid, como cloroquina e ivermectina, cujo uso foi defendido como política pública pelo ex-presidente Jair Bolsonaro aqui no Brasil. “Nos EUA, o governo pagou bilhões para a mídia promover a vacina”, acusou Kory. “Para que tomá-la se há uma medicação barata, eficaz e aprovada (ivermectina)?” No início de 2021, a Associação Médica Brasileira (AMB) afirmou que o uso desses remédios contra a covid-19 deveria ser banido.
Ao longo do evento, Barth exibiu vídeos de supostas vítimas da vacina da covid-19 e fez perguntas que questionavam a segurança de imunizantes aos convidados. Em resposta e ao longo de suas falas, os participantes espalharam mentiras como a de que imunizantes conteriam metais tóxicos, que a “vacinação em massa” seria um “genocídio” e que governos usaram técnicas de “operações psicológicas de quinta geração” para convencer as pessoas a se vacinarem.
A vereadora também defendeu punição a gestores que promoveram a imunização durante a pandemia. “O grande desafio, não só do nosso Brasil, mas de todos os outros países, é criar uma legislação que proteja as vítimas do medicamento (vacina)”, afirmou. “Precisamos ter dispositivos legais para aqueles que obrigaram as pessoas a passarem por isso sejam responsabilizados.”
Uma análise recente conduzida por pesquisadores britânicos estimou que as vacinas contra a covid-19 salvaram quase 20 milhões de vidas no mundo entre dezembro de 2020 e o fim de 2021 – cerca de um milhão delas só no Brasil. Estudos estimam que 46 mil brasileiros teriam sobrevivido ao coronavírus se os imunizantes tivessem sido adotados mais cedo pelo governo Bolsonaro. Com 90% da população vacinada com ao menos uma dose contra o coronavírus e 63% com esquema vacinal completo, Porto Alegre não computou nenhum paciente internado com a infecção na última semana.
O que disse a Câmara dos Vereadores
Questionada do porquê ter sediado uma reunião antivacina, a assessoria de imprensa da Câmara dos Vereadores disse que os vereadores têm cotas para o uso do espaço legislativo e que a responsabilidade do encontro foi inteiramente da parlamentar que o promoveu – o presidente da Casa participou da abertura do evento. A Câmara também se isentou da responsabilidade de sediar um evento com desinformação em saúde.
“Em relação ao questionado, a Câmara Municipal informa que os espaços do Palácio Aloísio Filho, sede do legislativo da Capital são públicos e utilizados por vereadores, pelo executivo e por diversas entidades na realização de eventos e atos. Os vereadores possuem cotas para utilização destes espaços, e não havendo outra agenda no mesmo local, data e horário o espaço é regularmente cedido.
Quanto ao tema do evento e palestrantes, ressaltamos que não cabe a gestão da Câmara Municipal fazer qualquer juízo de valor a respeito dos debates promovidos por gabinetes parlamentares, sendo assim, cada vereador responde individualmente pelos eventos que promove. Já em relação à cobertura jornalística, informamos que a mesma acompanha de forma regimental e legal à agenda do presidente deste legislativo, cujo qual participou da reunião, a convite da proponente. No que diz respeito ao teor dos discursos dos palestrantes, bem como escolha do mesmos, ou formato em que os convites para participação são feitos, são todos de definição e responsabilidade do proponente do evento”, disse em nota.
Perguntada pelo Matinal do porquê ter promovido um evento antivacina, a vereadora Fernanda Barth disse que o encontro tratou de “informações médicas, de médicos com extensos currículos e centenas de trabalhos publicados” e que “sem liberdade e autonomia médica não existe ciência e nem inovação”.
Segundo Barth, que negou que o seminário tenha sido antivacina, o “importante” seria “promover o debate mostrando estudos de médicos sem conflitos de interesse”, discurso que está alinhado com o que dizem grupos bolsonaristas que foram financiados por fabricantes de ivermectina ao longo da pandemia e hoje são antivacina. “Os trabalhos apresentados aqui são fruto do trabalho de médicos renomados e expoentes internacionais de suas áreas”, afirmou.
A vereadora enviou à reportagem os currículos dos médicos e ativistas que participaram do seminário. A listagem pode ser conferida nas redes sociais de Barth.