Reportagem

Como Porto Alegre se tornou o palco de iniciativas para combater o racismo na tecnologia

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Como Porto Alegre se tornou o palco de iniciativas para combater o racismo na tecnologia Em 2019, a Capital sediou a primeira conferência nacional de tecnologia voltada para a comunidade negra. Foto: Afrovulto/Divulgação

Comunidades e projetos dentro de empresas fomentam a capacitação e inserção de profissionais negros no mercado de trabalho

Três anos antes da morte brutal de João Alberto Freitas, espancado por dois seguranças brancos em uma loja do Carrefour, Porto Alegre fechava o Mês da Consciência Negra não com uma tragédia, mas com um evento que deveria ser motivo de orgulho para sua população. 

“Foi a primeira vez em que estive em um ambiente em que não me senti vigiado ou desconfortável. Era um ambiente em que eu era simplesmente uma pessoa, e não uma pessoa negra em determinado recorte. Isso me comoveu muito”, relembra o então estudante Daniel Quadros. 

Com cerca de 50 pessoas, o encontro do qual Quadros participou em 2017 dava forma ao AfroPython, um movimento de inclusão de pessoas negras no mercado de tecnologia da informação. Voltado apenas para a comunidade afro, o primeiro encontro teve oficina com lições de linguagem de programação e dicas sobre o mercado de trabalho. “O AfroPython é uma iniciativa que toca na raiz do problema, na questão do acesso, da educação e possibilidade para as pessoas”, complementa Quadros, hoje formado em jornalismo.

Daniel Quadros, no primeiro encontro da AfroPython, em 2017 (Foto: Daniela Araújo/Divulgação)

Celebrado como um importante meio de empoderamento para estudantes e profissionais negros, o movimento nasceu como reação a um cenário vergonhoso para os porto-alegrenses, ilustrado pela falta de representatividade negra e pelo racismo cotidiano no mercado de trabalho. Apesar de Porto Alegre ter sediado o nascimento do movimento que levou à criação do Dia da Consciência Negra, a cidade ainda não foi capaz de superar anos de discriminação racial que marcam o sul do Brasil. O Rio Grande do Sul é o estado onde mais ocorrem atos de injúria racial, conforme o 13º Anuário da Violência elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Foram 1.507 casos notificados em 2018. Paraná e Santa Catarina estão logo atrás.

Os números dão a dimensão do que os negros vivem cotidianamente por aqui. Engenheiro de software e um dos fundadores do movimento, Felipe de Morais trocou o Rio de Janeiro por Porto Alegre em 2015 para trabalhar na empresa ThoughtWorks, consultoria global de software que está presente em 13 países. A mudança de uma cidade onde 47,3% da população se autodeclara preta ou parda para outra onde este índice é de 23,4% fez diferença na sua percepção como indivíduo negro. “Enquanto eu estava no Rio de Janeiro, eu não percebia que não havia pessoas negras nas comunidades de tecnologia, pessoas parecidas comigo. Fui tomar consciência disso muito tempo depois, aqui em Porto Alegre, em especial no âmbito profissional”, diz.

A falta de diversidade racial no setor é uma realidade em todo o País. Um levantamento da Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação (Brasscom) mostra que, em 2018, 59% do contingente de 845.479 profissionais do setor eram brancos e asiáticos , sendo 37% homens e 22% mulheres. Já os negros, pardos e indígenas são 30% dessa força de trabalho, sendo 19% homens e 11% mulheres. Os dados estão distantes da proporção da população do Brasil, onde 56,10% são pessoas autodeclaradas pretas ou pardas.

Organizadores da conferência nacional, em 2019. Foto: Afrovulto/Divulgação

Foi para mudar esse cenário que nasceu o Afropython, uma iniciativa de cinco moradores negros de Porto Alegre que se perceberam isolados nas suas atividades profissionais e sentiram a necessidade de fomentar maior diversidade na área da tecnologia. O movimento busca desmistificar a dificuldade dentro da TI, seja em relação ao acesso ou ao conteúdo. Aliás, não é por acaso que o grupo escolheu o Python: essa é uma linguagem de programação de aprendizado mais simples, que permite que pessoas que nunca programaram possam ler os comandos com mais facilidade.

Em 2019, a Capital sediou a primeira conferência nacional de tecnologia voltada para a comunidade negra, uma organização do AfroPython. O evento recebeu cerca de 120 pessoas, de todas as regiões do Brasil. Na época da criação do movimento, alguns dos criadores, como Morais, trabalhavam na Thoughtworks. A empresa é conhecida pelo trabalho de inclusão que promove internamente. Segundo a publicitária Juliana Oliveira, da área de pessoas da TW em Porto Alegre, são comuns as iniciativas para estimular e conscientizar o público interno em relação a questões raciais, além de recrutamentos focados em pessoas negras. O escritório conta com um grupo chamado Quilombolas, que constantemente discute ações de inclusão racial dentro da empresa.

Para além de Porto Alegre

Com cada vez mais voluntários – hoje são 42 –, o AfroPython ganhou força e espalhou-se por outras cidades. Já houve encontros em São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Belo Horizonte. Conforme estimativas do próprio grupo, mais de 1 mil pessoas já foram impactadas pelas suas ações, recebendo capacitações, bolsas para cursos na área ou de idiomas e ingressos para conferências nacionais. A rede que se criou com o movimento ajuda na divulgação de vagas de emprego e outras oportunidades no setor em um grupo do WhatsApp, do qual fazem parte organizadores do movimento e quem já participou dos eventos promovidos pelo AfroPython. 

O movimento já extrapolou as fronteiras do País. Felipe de Morais atua como embaixador do AfroPython e, no ano passado, levou a iniciativa para a maior conferência de Python do mundo, a PyCon US, em Cleveland (EUA). Ele também esteve em Acra, capital de Gana, apresentando o projeto na PyCon Africa. Morais conta que essas experiências despertaram novas perspectivas sobre o que é ser negro e como pessoas negras são tratadas de forma diferente, dependendo do lugar em que estejam.

Felipe de Morais apresentou o AfroPython
em outros países. (Afrovulto/Divulgação
)

As apresentações de Morais têm gerado interesse de profissionais de outros países a desenvolverem projetos semelhantes em suas regiões, o que demonstra que a falta de acesso de pessoas de grupos sub representados não é um problema só do Brasil. No Uruguai, desenvolvedores entraram em contato com a organização para conhecer mais sobre o movimento e receber uma consultoria para realizar eventos parecidos em Montevidéu.

Uma onda antirracista

O surgimento do AfroPyhton coincide com um momento em que o mercado se movimento em direção a mais diversidade. Amanda Vieira, desenvolvedora de software e uma das idealizadoras do movimento, acredita que o coletivo tem contribuído para os novos ventos. “As pessoas começaram a se questionar sobre a diversidade racial em seus ambientes”, diz. De olho nessa oportunidade, o movimento começou a oferecer palestras sobre tecnologia, carreiras e diversidade ministradas pelos próprios voluntários para empresas e eventos.

 Além disso, as próprias instituições passaram a se interessar em colaborar com o movimento, como uma forma de ampliar o alcance das ações e a quantidade de pessoas impactadas. Em outubro, o Nubank, startup brasileira de serviços financeiros, lançou uma coleção de roupas e acessórios, em parceria com a plataforma de vendas Chico Rei. Conforme a empresa, todo o lucro arrecadado será destinado para o AfroPython e a EducaTRANSforma, projeto de inclusão e crescimento profissional focado na capacitação de pessoas transgênero, também de Porto Alegre.

A startup também criou o DiversiDados, uma imersão em Ciência de Dados voltado para pessoas que se identificam como grupo sub-representado na área da tecnologia. O curso é realizado pela equipe do Nubank em parceria com a {reprograma}, o AfroPython e a EducaTRANSforma e tem inscrições gratuitas.

Outro bom exemplo de Porto Alegre é de uma das principais empresas de webhosting do Brasil, a KingHost. Em 2019, a empresa criou o Comitê de Inclusão e Diversidade, para implementar uma cultura de inclusão e pertencimento e construir um ambiente mais seguro para os colaboradores de grupos socialmente vulneráveis. O comitê é dividido em cinco pilares: Questões Raciais, Idade, LGBTQ+, Mulheres e PCD. “Inicialmente, tivemos seleções que priorizavam pessoas negras, mas isso não era divulgado, o que fez com que essas pessoas não se candidatassem para essas oportunidades. Foi então que o RH optou por realizar uma campanha de divulgação de vaga voltadas para pessoas negras”, conta Silvana Alvino, uma das embaixadoras do Comitê.

Silvana Alvino é uma das embaixadoras do Comitê de Inclusão e Diversidade da Kinghost. Foto: Kênia Fialho/Divulgação

A empresa também atua para corrigir um problema comum no mercado de trabalho: a discriminação indireta. Segundo a procuradora do MPT-RS Ana Lúcia Stumpf González, vice-coordenadora nacional da Coordenadoria Nacional de Promoção da Igualdade de Oportunidades e Eliminação da Discriminação no Trabalho (Coordigualdade), ainda que os processos seletivos não excluam explicitamente pessoas negras, são recorrentes exigências para as vagas que naturalmente vão limitar o acesso desta população, uma vez que o racismo estrutural impede que este grupo desenvolva certas competências. “Se você exige fluência em inglês, você já retira a possibilidade de pessoas negras conseguirem essa vaga, pois a maior parte delas ainda não tem acesso a este conhecimento”, diz. 

Foi pensando nisso que a King decidiu capacitar profissionais antes mesmo que eles se candidatem para as vagas. Lançado neste ano, o Diversa é um programa gratuito de desenvolvimento para pessoas interessadas em tecnologia. A primeira turma foi destinada apenas para pessoas negras. O evento ocorreu entre os dias 18 e 2o de novembro, de forma online. 

A procuradora reforça que as empresas devem estar comprometidas com esta mudança. “Tem que corrigir isso, não dá mais para esperar”, diz. González destaca a seleção para vagas de trainee exclusivas para pessoas negras realizada pelo Magazine Luiza e afirma ainda que a capacitação pode realizada depois da contratação: “Você diminui as exigências na contratação e oferece àquele profissional a capacitação necessária para aquela função após o ingresso dele na empresa. Isso é bom para o profissional e é bom para a empresa”.

O AfrotechBR foi mais um movimento nascido em Porto Alegre para combater o racismo no mercado da tecnologia. A iniciativa que buscou promover a ascensão de profissionais negros nessa área foi extinta em julho deste ano para dar lugar ao Afroya Tech Hub, um espaço afrofuturista para desenvolvimento de projetos colaborativos que promovam a inserção e o pertencimento de pessoas negras no ecossistema de tecnologia e inovação. 

O projeto foi idealizado por Andreza Rocha, recrutadora do setor da tecnologia, com mais de 15 anos de atuação. “Realizamos processos seletivos intencionais e com propósito, damos suporte a grupos de afinidade e conectamos empresas de diferentes portes à Comunidade Negra. Advogamos pela liberdade e respeito à identidade preta nos espaços corporativos”, destaca. O Afroya também busca conectar pessoas negras a oportunidades de carreira e capacitação em outros países. “Porque somente consumir se nós também podemos produzir tecnologia?”

O lançamento oficial da plataforma foi no dia 25 de novembro, pelo canal do YouTube da BrazilJS, organizadora do maior evento de ​JavaScript do mundo e parceira da iniciativa. Como forma de fortalecer negócios relacionados à diversidade e inclusão étnico-racial na área de TI, o evento online contou com palestras com lideranças do mercado, painéis com grupos de afinidade de empresas de tecnologia e bate-papos com expoentes do afrofuturismo no Brasil.

Segundo Andreza, o próximo desafio é criar o maior banco de talentos de pessoas negras do País na área de TI. “Estamos mapeando e coletando currículos de profissionais de todos os níveis de carreira, com destaque especial para lideranças: tech leads, heads de engenharia, arquitetura, principal engineering, entre outros”, ressalta. 

Questão de sobrevivência 

Depois da morte brutal de João Alberto, 11 multinacionais comprometeram-se a combater o racismo em suas companhias e publicar um plano de ação “em parceria com organizações e especialistas que possuem conhecimento legítimo dessa causa”. O Carrefour, por sua vez, anunciou a criação de um fundo de 25 milhões de reais para combater o racismo. 

De nada adianta lançar tais iniciativas se não houver comprometimento das lideranças, alerta Daniela Santos, doutoranda em Sociologia e Antropologia na UFRJ. Santos ressalta que é preciso ter uma postura ativa contra o racismo. “Ser omissa, é ser conivente”, diz. Para ela, as empresas têm que incluir na sua cultura o antirracismo como um princípio e que é importante que este tenha um valor inegociável em todos os níveis hierárquicos. “Quem define os valores organizacionais são as lideranças, logo, se as principais lideranças não se engajarem nessa empreitada, nada acontecerá”.

Para a pesquisadora Santos,  a falta de diversidade
em uma equipe limita a capacidade de
resolução de problemas. (Acervo pessoal)

Para ela, a diversidade nas empresas é também uma questão de sobrevivência. “As maiores empresas do mundo, assim como as mais admiradas, têm políticas voltadas à diversidade, pois já foi atestado que se dedicar a essas questões traz resultados”, diz. A pesquisadora, também mestra em Administração com ênfase em Teorias Organizacionais, propõe um exercício para exemplificar: “imagine um grupo homogêneo de funcionários, que têm as mesmas origens e vivências semelhantes, nasceram em lugares parecidos, têm uma estrutura familiar parecida, estudaram em escolas e universidades parecidas, conviveram apenas com pessoas parecidas, viajaram para os mesmos lugares e acreditam nas mesmas coisas. A tendência é que essas pessoas tenham perspectivas parecidas, o que limita a capacidade de resolução de problemas desse grupo”. 

No caso da área de tecnologia, a falta de pluralidade dentro das organizações reforça estereótipos e preconceitos quando novos produtos e serviços são lançados no mercado sem considerar a diversidade da população. A pesquisa “Linha do Tempo do Racismo Algorítmico”, de Tarcizio Silva, mostra como as mídias sociais, aplicativos e o desenvolvimento da inteligência artificial foram – e ainda são – construídos em vieses raciais. O pesquisador chama a atenção para um série de exemplos, entre eles conteúdos hiper-sexualizados para buscas pelo termo “garotas negras” no Google Imagens, marcação de fotos de jovens negros com a tag “gorila” pelo Google Fotos, aplicativos que transformam selfies e equiparam beleza à pele clara. 

Para Santos, o racismo está entranhado nas relações, na organização sociopolítica e econômica da sociedade. Ela cita o informativo “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”, do IBGE, que mostrou que em 2018, 68,6% dos cargos gerenciais eram ocupados por brancos, enquanto somente 29,9% eram ocupados por pretos e pardos. “Essa desvantagem das pessoas negras continua existindo, ainda que levemos em conta o recorte por nível de educação formal, o que quer dizer que essa diferença independe do número de anos de estudo, como a princípio se poderia pensar”, acrescenta a pesquisadora, que ministra um curso online que oferece orientações para revisar rotinas das empresas e formas de proporcionar relações que valorizem as diferenças.

Ainda que sejam pontuais, para Morais, iniciativas de combate ao racismo no mercado fomentam o crescimento de pessoas negras em posições de destaque, seja pelo vasto conhecimento na área ou pela posição de destaque que alcançaram, fazendo com que outros profissionais tenham a esperança de também alcançar esses lugares. “Ver alguém igual a nós nessas posições é muito significativo, e é isso que queremos fazer: ser a referência para quem está começando, não só por acreditar que elas conseguem, mas para que elas também acreditem”.

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