Reportagem

Crise em centro de reabilitação deixa mais de 800 pacientes na fila por cadeira de rodas

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Crise em centro de reabilitação deixa mais de 800 pacientes na fila por cadeira de rodas Fundado em março de 1964, o centro de reabilitação enfrenta crise financeira há três anos | Foto: Pedro Nakamura

Cerepal tenta regularizar serviço após rombo financeiro deixado por gestão anterior e afirma que contrato irregular com secretaria de saúde piorou prejuízos; prefeitura avalia rompimento

Cerca de 803 pessoas com deficiência aguardam cadeiras de rodas motorizadas e adaptadas que deveriam ser fornecidas pelo Centro de Reabilitação de Porto Alegre (Cerepal), 597 delas na capital. Os dados foram informados pela entidade à Secretaria Municipal de Saúde (SMS) em abril. 

Dois anos antes, em julho de 2021, a lista de espera era de 617 pacientes, segundo o Conselho Municipal de Saúde (CMS). A prefeitura avalia romper o contrato com o centro e já diz estar em busca de alternativas para acabar com a longa fila.

O Cerepal tenta se recuperar de uma crise iniciada há três anos por um rombo de ao menos R$ 1,7 milhão em cadeiras de rodas, órteses e próteses compradas com verba do SUS, mas que não tiveram sua entrega aos pacientes comprovada ao longo de 2019. Identificada pela própria entidade após uma troca de diretoria no início de 2020, a situação foi encaminhada ao Ministério Público (MP-RS), que apura, em sigilo, se houve improbidade no caso. Auditorias da SMS atestaram um dano de R$ 1,06 milhão ao erário municipal por não ser possível comprovar se as cadeiras foram entregues.

“Eles têm uma demanda muito grande de pessoas esperando por cadeiras já pagas pela secretaria e não têm o dinheiro para essa compra. Temos casos de pessoas que estão há quatro anos esperando”, diz o aposentado Nelson Kalil, presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência de Porto Alegre (Comdepa). Os problemas estruturais do sistema de saúde, como o subfinanciamento da tabela SUS para a compra de equipamentos como cadeiras de rodas, somados à crise no Cerepal, deixam “impraticável a vida da pessoa com deficiência em Porto Alegre”, segundo Kalil.

Habilitada como Centro Especializado em Reabilitação de nível dois (CER II), a entidade fornece órteses, próteses e materiais especiais (OPMs), como equipamentos de locomoção, além de atender a reabilitação intelectual e física de pessoas com deficiência pelo município, o que inclui serviços de médicos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, assistentes sociais e terapeutas ocupacionais. Há somente outras duas unidades capacitadas para atendimentos do tipo em Porto Alegre, a AACD e o Hospital Santa Ana. Na reabilitação física, o Cerepal responde por metade dos atendimentos da capital, serviço que hoje está regular.

No aguardo por uma cadeira desde março de 2021, o aposentado Ademar Zuge, 65 anos, buscou a Defensoria Pública para garantir na Justiça a entrega de uma cadeira de rodas motorizada pela entidade. Em um acidente doméstico, o idoso sofreu um trauma na medula que o levou a uma tetraplegia espástica (lesão que não causa paralisia geral, mas rigidez nos membros) e precisou de sessões de reabilitação no Cerepal via SUS. O tribunal decidiu que o equipamento deveria ser entregue até o início de julho. Segundo o Cerepal disse à Matinal, a cadeira chegou ontem (22) e sua entrega está marcada para hoje (23).

“Minha casa tem uma rampa e não consigo descê-la sozinho, nem minha esposa, porque é muito pesado. Então se não tiver alguém que venha ajudar, (sem a cadeira nova) fico a semana toda dentro de casa, sem conseguir ir ao mercado, fazer nada”, relata Zuge, que diz ter sido “muito bem atendido” pela equipe da entidade e não ter queixas fora a demora de mais de dois anos na entrega do equipamento. 

Com a reabilitação, o aposentado recuperou parte dos movimentos na mão direita e consegue dar alguns passos com andador. “A mão esquerda segue fechada e não abro os dedos, mas com a direita seguro o celular com dois dedos e já posso tirar a barba, essas coisas”, conta.

Em março de 2022, prefeito se reuniu com a direção do Cerepal para buscar soluções à continuidade da operação da instituição. (Foto: Giulian Serafim/PMPA)
Em março de 2022, prefeito se reuniu com a direção do Cerepal para buscar soluções à continuidade da operação da instituição (Foto: Giulian Serafim/PMPA)

Contrato da prefeitura piorou prejuízos, diz Cerepal

A situação do Cerepal vinha sendo criticada pelo Conselho Municipal de Saúde (CMS) desde 2021, sem que fosse resolvida pelo governo Melo. Em julho daquele ano, um parecer da Secretaria Técnica (Setec) do conselho apontou que, desde outubro de 2020, a entidade não fornecia cadeiras de rodas para os usuários, ainda que repasses de R$ 140 mil mensais reservados pelo Ministério de Saúde a unidades CER 2, como o Cerepal, estivessem mantidos. 

A falta de comprovação e entrega das cadeiras já pagas só teria ocorrido em decorrência da falta de fiscalização da SMS, que por anos pagou adiantado pelos equipamentos. O próprio rombo milionário de 2019, por exemplo, foi constatado e denunciado pela própria diretoria do centro, e não pela secretaria. “O principal problema, creio eu, foi a SMS ter deixado isso passar sem fiscalização ou acompanhamento de perto”, avalia Nelson Kalil, presidente do Comdepa. “Cabe à pasta, como órgão gestor da política de saúde, não deixar acontecer o que houve dentro do Cerepal.”

Administrado por pais e mães de crianças com deficiência, o centro pediu ajuda ao advogado especialista em reestruturação empresarial, Maxsoel Bastos, para ajustar as contas do centro de forma voluntária. Ele está na função desde fevereiro de 2022, mês em que eclodiram greves de trabalhadores e dificuldades para parcelar dívidas trabalhistas na Justiça. A promessa de Bastos é solucionar os problemas de caixa da entidade até o fim deste ano.

Segundo o advogado, hoje, o fornecimento de cadeiras de rodas segue enfrentando atrasos porque a entidade agora paga adiantado pelo equipamento para só receber os repasses do SUS três a quatro meses depois. “Tenho que comprar a cadeira, recebê-la, chamar o paciente que às vezes não vem, entregá-la, juntar o comprovante da compra e da entrega, para depois receber o valor”, explica, situação que se soma à desconfiança de fornecedores com um eventual calote da entidade, o que faz inflar preços. “Não tem instituição filantrópica que se mantenha custeando um produto que ora tem que pagar adiantado, ora tem que pagar um preço superior ao que o SUS repassa”, justifica. 

Bastos afirma também que a crise na instituição foi agravada por um contrato “desequilibrado” imposto pela SMS, que teria comprometido ainda mais o fluxo financeiro da entidade, e não apenas pelo rombo em órteses, próteses e materiais especiais (OPMs) deixado pela diretoria anterior. “Muitos dizem que o grande problema (do Cerepal) era um endividamento por cadeiras de rodas compradas em 2019 e que não foram entregues aos pacientes”, explica o advogado. “Isso era consequência de uma gestão que endividou a administração, mas a situação piorou quando foi assinado o contrato da CER-2, em 2020”, diz. 

Quando o centro foi credenciado para reabilitar pessoas com deficiência, a prefeitura incluiu no contrato a prestação de serviços da fisioterapia de baixa complexidade do SUS, mas pagando apenas pela reabilitação, afirma o advogado. Ou seja, a entidade recebia por 2,4 mil atendimentos mensais, mas era obrigada a prestar 8,3 mil. Fontes ligadas ao CMS confirmaram à Matinal que entidades habilitadas como CER 2 não poderiam prestar a fisioterapia geral. Já a prefeitura nega e diz que o contrato foi revisado pela procuradoria municipal sem apontamentos que indicassem ilegalidades ou irregularidades. 

“Aqui temos sete contratos públicos e todos têm equilíbrio, menos o CER 2 firmado com a Secretaria Municipal de Saúde”, diz o advogado. Segundo ele, fora atendimentos de reabilitação e compra de cadeiras e próteses, a entidade também presta serviços de assistência social e educação à prefeitura e ao Estado sem que haja prejuízos.

Negociação com o MP-RS

Em meio ao desacordo com a prefeitura, o Cerepal procurou o Ministério Público para repactuar esse contrato deficitário. O objetivo foi reduzir os atendimentos mensais e a quantidade de cadeiras entregues, além de regularizar a equipe multidisciplinar da entidade, que tem déficits. Hoje, a entidade emprega mais fisioterapeutas do que deveria e menos de outras profissões, como fonoaudiólogos e enfermeiros. Isso porque a habilitação de CER-2 exige uma quantidade fechada de profissionais.

Um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) foi assinado em novembro de 2022. Com isso, os serviços de fisioterapia geral do SUS foram removidos das obrigações do centro, que se comprometeu a prestar atendimentos na faixa do piso de 2,4 mil atendimentos mensais, critério que o centro tem cumprido, segundo informações prestadas à prefeitura. No entanto, a entidade segue em dificuldades para fornecer as seis cadeiras mensais estipuladas pelo acordo.

“Como promotor, entrei ali numa tentativa de dar mais tempo para a instituição se recuperar, sabendo que ela faz um serviço que faz falta ao município. Mas a entidade diz que o município não cumpre a sua parte, e o município, por sua vez, tem a sua lista de itens que não estão sendo cumpridos pelo Cerepal”, diz o promotor Mauro Luís de Souza, da Promotoria de Justiça de Defesa dos Direitos Humanos, que mediou o TAC. “Este é o impasse”, resume. Hoje, o MP-RS acompanha o cumprimento do termo.

Na última sexta-feira (18), no entanto, a prefeitura buscou o MP-RS para dizer que a entidade não estaria cumprindo o termo e teria até o fim do mês para “se adequar aos padrões mínimos da legislação pertinente”. Já o centro de reabilitação afirma não estar desrespeitando o acordo.

De acordo com uma auditoria de maio a qual a Matinal teve acesso, a SMS afirma que o centro de reabilitação não forneceu à pasta a documentação necessária para comprovar o cumprimento do TAC, o que suscitou a recomendação de se avaliar “a possibilidade de rescisão”. Em contrapartida, o Cerepal disse à reportagem que forneceu os referidos documentos.

A SMS afirmou à Matinal já estar analisando a possibilidade de aditar contratos já existentes ou de lançar uma contratação emergencial, se necessário, para uma eventual substituição dos serviços do Cerepal. “Possivelmente haverá publicação de edital de credenciamento”, disse a pasta, que indicou ter sondado o Grupo Hospitalar Conceição (GHC) para o serviço.

“Estamos tentando aproximar os dois para ver onde estão os pontos em que há concordância para ir à frente, mas há limites”, diz o promotor. “Desde 2019 temos este problema que todo mundo vem tentando administrar, e não sabemos exatamente a dimensão e até que ponto é solucionável.”


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