Reportagem

“Todo o sofrimento não pode ser em vão”, diz primeira enfermeira a entrar na Kiss na noite da tragédia

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“Todo o sofrimento não pode ser em vão”, diz primeira enfermeira a entrar na Kiss na noite da tragédia Liliane inspirou personagem de série da Netflix sobre a tragédia Foto: Arquivo Pessoal)

Capitão reformada da Brigada Militar, Liliane Mello Duarte inspirou personagem da série da Netflix sobre o incêndio em Santa Maria, que completa 10 anos hoje

Santa Maria convive há 10 anos com uma ferida ainda aberta. Para além das vítimas diretas do incêndio que matou 242 pessoas e deixou mais de 600 feridas, existem centenas de profissionais da saúde e das forças públicas que atuaram no fatídico 27 de janeiro de 2013 e ainda hoje elaboram seu luto. Liliane Mello Duarte foi personagem chave na operação daquela noite e ganhou destaque nos primeiros episódios da série Todo dia a mesma noite, inspirada no livro homônimo da jornalista Daniela Arbex sobre a tragédia e que estreou nesta semana na Netflix. 

Enfermeira do hospital da Brigada Militar à época, foi responsável por identificar os corpos. Foi a primeira mulher a entrar na boate Kiss e profissional fundamental para colocar ordem no caos daquela noite. Mas não está interessada no rótulo de heroína. “Eu era a oficial de sobreaviso, meu nome estava lá. Fui sim a primeira mulher a entrar, mas não fui a única, muitas pessoas trabalharam. Não sou a Mulher Maravilha, não sou heroína. Fiz o meu melhor como todo mundo fez.”

Capitão reformada, aos 58 anos, mãe de Ana Maria, 17 anos, e de João Felipe, 24, Liliane conversou com o Matinal por telefone nesta quinta. Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

Como tem sido reviver o episódio da tragédia 10 anos depois? Chegou a assistir à série da Netflix, que tem uma personagem inspirada na senhora? 

Vou te ser bem sincera. Eu comecei a ver o primeiro episódio e não consegui ir além. Chorei muito. Na época da tragédia, eu não falei com a imprensa, só fui falar muito tempo depois. Aceitei conversar com a Dani (Daniela Arbex) quando ela me explicou o projeto do livro. Eu sempre pensei que tudo isso não pode ser em vão, todo esse sofrimento. Todos nós sofremos, eu, os cuidadores… Mas não temos a dimensão do sofrimento dos pais. Por mais que estejamos consternados. O objetivo de tudo isso é para que não se repita. O que está feito, está feito, não se pode mudar. Mas os pais têm razão em não querer que seja esquecido, e que não se repita. É o que eu quero como mãe. Só que os jovens continuam entrando em lugares superlotados, as casas não têm o número de lotação visível, escolas e hospital não têm PPCI (Plano de Prevenção e Proteção Contra Incêndio).

Isso especificamente em Santa Maria ou nas cidades de forma geral? 

De forma geral no Brasil. Conheço o Brasil inteiro. Quantas Kiss tem em São Paulo? No Rio? Em Manaus? Fui recentemente a Capão da Canoa e a Santa Catarina e vi vários lugares sem o número da lotação máximo visível. Em uma praia, um desses locais tinha um cadeado na porta que era saída de emergência. Eu, como sou “meio barraquenta”, chamei o responsável e perguntei se ele já tinha ouvido falar na tragédia da boate Kiss. Ele fez que sim com a cabeça e tirou o cadeado. Parece que pouca coisa mudou. Talvez aqui em Santa Maria tenham mais cuidado. A dor é aqui, as pessoas se conhecem. Aprendemos da maneira mais dura. Foram 242 mortos. Todo mundo tem algum conhecido entre as vítimas.

A senhora perdeu pessoas próximas? 

Sim. Alunos da faculdade de Educação Física da Fames (Faculdade Metodista Centenário), onde eu dava aula, filhas de amigos… Alguns pais eu encontrei no dia, foi bem chocante.

Na série, a personagem inspirada na senhora se mostra fundamental para organizar a situação logo após o incêndio. 

Eu era capitão do Hospital da Brigada, estava de sobreaviso. Entrei depois que um oficial me informou que estavam já todos mortos lá dentro. Sou enfermeira e, historicamente, nas guerras, batalhas, cabe à enfermagem o cuidado com os corpos. Eu tinha 48 anos na época. Fui a primeira mulher a entrar. O impacto de entrar lá… Os celulares tocando músicas de tudo quanto era tipo, aquela escuridão, um calor insuportável. Sou uma pessoa de muita fé, sou católica, acredito em Deus. Me entreguei por completo à Nossa Senhora, pedia “tu me guia, não me abandona”. Eram muitas decisões que precisavam ser tomadas.

E rapidamente, certo?

Sim, rapidamente. Como transportar e acomodar os corpos, não tínhamos caminhões apropriados, as macas estavam sendo usadas para os vivos. Eu precisava tirá-los (os corpos) de lá, devolvê-los para os pais. A coisa precisava caminhar. Tinha ainda decisões aparentemente pequenas, como achar uma alternativa para os papéis que identificavam os corpos, que molhavam e se desgrudavam. Me veio uma luz e pedi um grampeador! Para prender nas roupas. Para quem não acredita em Deus, não tem como explicar… Nem tudo é mensurável. Ontem eu falava com uma médica que lembrou de me ver com um pacote de algodão dizendo: “limpem o rosto deles com todo carinho do mundo”. Alguns eram muito difíceis para as famílias identificarem, especialmente as mulheres, que têm mais tecido adiposo e incharam mais. As maquiagens derreteram, misturaram-se com fuligem e cabelo… E era preciso cuidar para não tirar a pele, por causa das queimaduras. Além disso, elas não carregavam as identidades nos bolsos, como era comum entre os meninos. Tenho um arquivo de fotos que às vezes eu olho quando preciso por questões educativas. O que me conforta, o que eu preciso acreditar, é que eles sofreram pouco.

Em 2017, você assumiu a Secretaria Municipal da Saúde. Nesse momento, passou a lidar com outros efeitos da tragédia, como a questão da saúde mental, certo?

Fiquei dois anos na Secretaria da Saúde, de agosto de 2017 a fevereiro de 2020. Meu objetivo era fazer com que os pais fossem acolhidos pela prefeitura. A cidade tem uma dívida com eles. Todos nós temos. Nós nunca nos preocupamos com isso. Tu olha onde está a saída de emergência em uma festa ou um clube? A gente tinha que ensinar prevenção para as crianças, como fazem nos Estados Unidos. Repito: toda essa dor não pode ser em vão. Precisamos transformar isso em aprendizado. 

Que aprendizados ficaram para a cidade nesta área?

Mantivemos o Santa Maria Acolhe (criado em 2013, sob o nome de Acolhe Saúde, o programa oferecia acompanhamento psicológico apenas a pessoas envolvidas com a tragédia da Kiss; em 2018, mudou de nome e ampliou o público-alvo). Alguns pais fazem terapia até hoje, outros foram liberados, e eles próprios resolveram que o programa passaria a atender também pessoas em risco de suicídio. Lembro que logo depois do incêndio, vieram psicólogos americanos para Santa Maria. Um deles falava muito sobre cuidar das crianças, e eu, que não falo tão bem inglês, mas entendo bem, me perguntava por que ele insistia nisso se as vítimas eram jovens, apenas um menor de idade morreu. “Que projetos vocês estão pensando para as crianças”, ele perguntava. Quando eu fui para a secretaria, comecei a olhar dados sobre saúde mental na cidade, autoflagelo de crianças, comportamentos suicidas, casos de adoecimento, depressão. Percebi que elas não passaram impunes a todo esse processo de sofrimento. E essa era uma leitura que aquele psicólogo tinha, com a experiência do 11 de Setembro, nos EUA, e eu não tive condições de entender na época. Olha, eu não sou a Mulher Maravilha, não sou heroína, não tenho pretensões partidárias, políticas. Ou melhor, políticas sim, de pensar políticas públicas, ensinar prevenção às crianças nas escolas. E tratar e acolher o sofrimento delas, provocado por tudo que escutaram (sobre a Kiss), por todo o imaginário que ficou. 

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