Reportagem

Frente parlamentar quer debater tarifa zero em Porto Alegre antes de possível reajuste

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Frente parlamentar quer debater tarifa zero em Porto Alegre antes de possível reajuste Frente parlamentar e projeto visam debater tarifa zero de ônibus em Porto Alegre | Foto: Brenda Rodrigues / CMPA

Porto Alegre deve ser informada ainda este mês sobre qual será o novo valor da passagem de ônibus, que está congelada há dois anos em R$ 4,80. Por ora, a Secretaria Municipal de Mobilidade Urbana se limita a informar que o valor “segue em análise”, sem indicar um possível índice de reajuste, ou mesmo se de fato o preço da passagem sofrerá alguma alteração. 

A dias desta definição, a proposta da vereadora Karen Santos (PSOL) de criar a Frente Parlamentar Pela Tarifa Zero foi aprovada na Câmara, em 14 de fevereiro. Com 21 votos a favor e 10 contrários, a iniciativa recebeu até mais apoio do que a esquerda costuma obter naturalmente. Ao mesmo tempo, demonstrou como a pauta, que tem avançado no Brasil, encontra resistência importante no legislativo porto-alegrense, especialmente por parte de lideranças do governo de Sebastião Melo (MDB). 

A frente ainda não tem uma programação de atividades definida. 

Vale frisar que a frente a ser instalada não se trata de uma proposta pela gratuidade no uso dos coletivos na capital – tal projeto, de autoria do vereador Roberto Robaina (PSOL)  até existe e já tramita na Câmara, mas ainda não chegou à ordem do dia. O objetivo da frente é funcionar, sim, como uma espécie de fórum sobre o assunto:. “O intuito de convidar palestrantes, movimentos sociais, intelectuais, secretários de mobilidade urbana de outros municípios e fazer esta construção”, explica Karen. “Para nós, o objetivo neste momento é conseguir construir essa correlação de forças, que hoje não existe no nosso município.”

Vereadora mais votada na última eleição municipal, ela acredita que o debate sobre o passe-livre estará presente em 2024: “Neste ano eleitoral, a discussão programática para a política de mobilidade urbana em Porto Alegre vai estar no centro do debate, então acreditamos que a tarifa zero pode vir a ser construída enquanto uma alternativa à crise atual do sistema”, opinou ela, integrante da Comissão de Urbanização, Transportes e Habitação da casa. 

Cenário de crise no setor se arrasta há anos

Ao longo dos últimos anos, mesmo antes da pandemia de covid, o transporte público perdeu passageiros. E o movimento não é exclusivo de Porto Alegre, ocorrendo desde o fim dos anos 1990, segundo o pesquisador André Augustin, que publicou artigo a respeito no livro “Reforma Urbana e Direito à Cidade”. Na capital, ainda houve um período de recuperação entre 2007 e 2012, impulsionada também pela implementação da bilhetagem eletrônica e pela possibilidade de pegar dois ônibus ao preço de um, medida que entrou em vigor em 2008 e cancelada anos mais tarde. 

Mas se em 2014 ainda eram mais de 300 milhões de passageiros transportados ao ano em Porto Alegre, ano passado, esse número não alcançou os 160 milhões – em 2020, no auge dos isolamentos sociais, mal passou dos 100 milhões, segundo os dados do portal de transparência da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC). Foi para evitar o colapso, que a prefeitura passou a aportar recursos ao sistema.

O mês de janeiro deste ano apresentou uma pequena recuperação no número de passageiros que utilizaram o sistema em Porto Alegre. Foram 12,2 milhões, o maior volume na comparação com o mesmo período nos últimos três anos, quando o total de passageiros oscilou entre 8,5 e 11,8 milhões. Consideravelmente inferior, contudo, aos registros de 2019 (17,3 milhões) e 2020 (16,7 milhões), antes da pandemia.

Fonte: EPTC

Demanda já deixou de ser da esquerda

A tarifa zero foi a principal reivindicação inicial das manifestações que tomaram conta do Brasil em junho de 2013. Se naquela época a gratuidade do transporte coletivo nas cidades era um discurso do campo da esquerda e soava utópica, hoje o cenário é diferente. Conforme levantamento do coordenador na Fundação Rosa Luxemburgo e doutorando em Planejamento Urbano e Regional na USP, Daniel Santini, 105 municípios brasileiros já adotaram o passe-livre – o pesquisador mantém uma tabela atualizada constantemente sobre o avanço da tarifa zero. Outros, como São Paulo, utilizam um modelo híbrido, como a liberação das catracas aos domingos. 

Dois destes municípios ficam no Rio Grande do Sul: Pedro Osório, onde a medida foi adotada em 2018, e Parobé, que adotou a tarifa zero em 2022.

Santini reconhece que para a tarifa zero ser implementada é necessário haver disposição política por parte da gestão municipal, algo que ele não não percebe em Porto Alegre – ao longo de sua gestão, Sebastião Melo enviou e conseguiu aprovação da Câmara de uma série de projetos na direção contrária, reduzindo tanto dias de passe livre, como isenções a determinados públicos, inclusive estudantes, além da extinção do cargo de cobrador e a privatização da Carris, única empresa pública da área e com mais de 150 anos de história. 

Em outubro do ano passado, a Matinal mostrou em uma reportagem como essa política de corte de benefícios afetou a vida de estudantes, que passaram a ter dificuldade para se mover entre a escola e a residência.

A justificativa dos projetos da prefeitura era pela manutenção do valor da tarifa. A questão financeira é, ainda, central no debate, na perspectiva da prefeitura. Em entrevista a GZH, o líder do governo Melo na Câmara, Idenir Cecchim (MDB) mencionou a razão econômica para criticar a ideia de uma tarifa zero na capital. Na declaração, criticou o PSOL por “oferecer utopia em ano eleitoral”. 

Apesar do comentário politizando a pauta do vereador, a tarifa zero deixou de ser uma pauta da esquerda. Dos 105 municípios com a gratuidade na passagem no país, dez são administrados pelo MDB – inclusive a cidade gaúcha de Pedro Osório. Conforme Daniel Santini, que monitora a relação de cidades com passe livre, a maioria dos municípios com a política da gratuidade é gerida por políticos do campo conservador. 

Ao comentar sobre a divisão política na Câmara a respeito da pauta, a vereadora Karen Santos frisou que em dezembro passado São Paulo adotou um dia de passe livre, aos domingos, e é gerida por um prefeito do MDB, Ricardo Nunes. “Percebi na expressão do placar final que não há o objetivo deste governo de encabeçar essa discussão, ao contrário do que estamos acompanhando em São Paulo.” 

Diante de crise, mudança de perspectiva

Para Daniel Santini, é momento de repensar o modelo tarifário para além do viés econômico. “O modelo sustentado pelas catracas faliu”, destacou. “A ideia de que o transporte público tem que dar lucro é uma perversão. É algo desconectado com o planejamento urbano e regional.”

O pesquisador cita que há compreensão, inclusive na Constituição, em prol da gratuidade, a partir do entendimento que a mobilidade é um direito do cidadão. “Existe uma base legal muito sólida para defender essa perspectiva”, garantiu. 

“Investir, subsidiar e favorecer o transporte coletivo é algo que tem relevância e tem interesse coletivo. É preciso considerar não só o lucro imediato, mas o impacto urbano e social que as políticas de mobilidade consideradas prioritárias promovem”, elencou o especialista, que contrapõe o apoio ao transporte público a obras rodoviaristas, como alargamento de avenidas ou construção de viadutos – que, segundo ele, raramente sofrem oposição. “Três SUVs ocupam o mesmo espaço de um ônibus, que transporta 50, 60 pessoas.”

De acordo com Santini, o cenário é propício para se repensar o transporte público. “A gente está vivendo uma crise que pode resultar no colapso do transporte público no Brasil.” As políticas que devem emergir desta virada devem visar integrar mobilidade e planejamento, segundo ele, que afirma que existem diversas fórmulas de se aplicar a tarifa zero, ainda que reconheça que todas dependem da disposição política da gestão local.

“Cada localidade tem o seu contexto sobre como buscar a tarifa zero”, disse, antes de citar o exemplo de Vargem Grande Paulista, cidade de 50 mil habitantes em São Paulo. Lá, conforme pesquisador, houve apoio do empresariado local, a partir do momento em que se percebeu que os ônibus gratuitos fomentaram o comércio no município. A medida acabou por brecar as pessoas de se deslocarem à cidade vizinha para fazer compras.

Autor de uma dissertação de mestrado que trata sobre o tema, Santini propõe o entendimento de que a tarifa zero seja uma ferramenta contra a desigualdade social. “É possível constatar que existe um fator de segregação social: os mais pobres não estão se movendo. Quando se quebra a barreira da catraca, você tem a explosão de mobilidade da população mais pobre, com mais acesso a empregos, cultura e estímulo à economia”.

Passe livre x cidades mais saudáveis

Além disso, ele apontou as “externalidades” que uma cidade com mais transporte público e menos transporte individual geram: “Quando eu faço injeções de dinheiro público em políticas rodoviaristas, para ampliar viadutos, pontes ou tentar construir mais avenidas, isso é uma solução tão eficiente quanto enxugar gelo, e provoca uma série de externalidades, como aumento de poluição e acidentes”, pontuou. Em 2023, Porto Alegre superou pela primeira vez a barreira dos 15 mil acidentes em sua malha urbana. Foram praticamente dois sinistros a cada hora do ano passado. Um dos fatores que contribuiu para o alto número, segundo a EPTC, foi o elevado número de veículos circulando em Porto Alegre, cifra que passa de 1 milhão por dia.  

Por outro lado, Santini completa, “a mobilidade ativa promove externalidades positivas”. Também por este contexto, o pesquisador defende a implementação da gratuidade da passagem, fortalecendo o transporte coletivo: “Cidades com redes fortes de transporte coletivo tendem a ser muito mais agradáveis para se viver. Ou seja, tendo mais gente combinando ônibus, caminhada, bicicleta, o espaço público se torna mais vivo. São cidades em que o comércio ganha mais força e que a convivência é valorizada, influenciando até na questão da segurança”, defendeu.

Essa relação entre a tarifa zero e saúde nas cidades é respaldada pelo professor de Transporte e Mobilidade Urbana do Programa de Pós-Graduação de Planejamento Urbano e Regional da UFRGS, Júlio Celso Vargas. Conforme ele, é possível projetar o aumento rápido de passageiros no transporte público com a isenção de passagens, em especial nas camadas mais vulneráveis da população.

O hipotético cenário da tarifa zero ainda teria um ganho a mais para breve, segundo apontou o professor da UFRGS. “Se essa utilização plena do transporte coletivo acontecer quando os ônibus forem elétricos, seria melhor ainda, porque tiraria carros da rua e ainda melhoraria o ar”, afirmou – o setor de transportes é o maior poluidor do ar na capital

Por outro lado, Vargas cita que há complexidades a serem avaliadas no Brasil, e lembra um impacto social que ocorreria com os motoristas de transporte por aplicativo, que veriam a demanda cair, além de impactos na indústria. “Seria uma sacudida forte.”


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