Reportagem

Por omissão da Funai, guaranis de todo o Estado vêm a Porto Alegre blindar território de invasores

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Por omissão da Funai, guaranis de todo o Estado vêm a Porto Alegre blindar território de invasores Com ajuda de guaranis de outras localidades, índios da Pindó Poty cercam área para conter invasões (Foto: Naira Hofmeister)

Área no bairro Lami está em processo de demarcação há uma década no órgão indigenista. Enquanto identificação não é concluída, índios temem perder área para construção civil

Um grupo de jovens indígenas guarani promovia um pequeno mutirão na tarde deste feriado, 21 de abril. Eles precisavam erguer uma cerca ao redor da aldeia Pindo Poty, que fica a poucos metros da rotatória de entrada do bairro Lami, na estrada do Varejão, uma movimentada via do extremo sul de Porto Alegre. 

Enquanto alguns faziam correr o rolo de arame farpado entre as vigas de madeira fixadas no chão, outros martelavam para deixar firme a proteção. “É para a segurança do nosso povo”, explica Roberto Ramires, o cacique da aldeia.

O motivo da precaução é o aparecimento de uma outra cerca, instalada logo depois da roça de mandioca, milho e melancia dos indígenas, mas que não foi colocada lá por eles. Atrás dela, foram erguidos na semana passada três barracos de madeira, onde agora mora gente estranha aos guarani e que reivindica um pedaço de chão que a etnia tenta provar que é seu pelo menos desde 2006.

Alarmados, os habitantes chamaram reforços e, desde a segunda-feira, 19 de abril, diariamente mais indígenas vindos de outras comunidades guarani – de Porto Alegre, do interior do Estado e até de Santa Catarina – desembarcam na localidade. A população local, que é de 30 pessoas, já passa de uma centena, e mais gente deve chegar nos próximos dias. “Assim é feita a luta dos guarani. Tem que ser todo mundo junto, com força total”, assegura o cacique.

Guaranis preparam ato cultural de resistência (Foto: Naira Hofmeister)

“E se precisar, vão vir parentes de São Paulo, do Espírito Santo, de todo o Brasil. Porque não é para parar por aqui, nós vamos resolver essa questão”, complementa Timóteo de Oliveira Karaimirim, cacique de outra comunidade guarani porto-alegrense, na Ponta do Arado, também alvo de invasões – por ora, contidas pela ação da Justiça. Ele é um desses parentes que vieram de longe, mas na tarde desta quarta-feira estavam lá também representantes de aldeias de Maquiné e de Santa Catarina, além de indígenas de todas as demais comunidades guarani de Porto Alegre. A prefeitura de Porto Alegre estima que 50 famílias guarani vivam na Capital.

Juntos, os indígenas preparam um ato cultural de resistência, nesta quinta-feira, às 14h, com exposição de artesanato e apresentação do coral. A proposta é chamar atenção da sociedade e cobrar agilidade da Fundação Nacional do Índio (Funai), que iniciou o processo de demarcação da área em 2012, mas ainda não o concluiu. “A nossa forma de lutar não é o enfrentamento, é muito mais ligada ao fortalecimento das tradições, à espiritualidade. Por isso os mais velhos estão chegando, os tiondaro (guerreiros) vem fazer a proteção, os jovens estão cantando e vai ter muita reza na casa de oração”, explica a indígena Kerexu Yxapyry, coordenadora da Comissão Guarani Yvyrupa e liderança da etnia em Santa Catarina.

Pindo Poty, o centro de um amplo território

A aldeia Pindo Poty – que em português quer dizer Flor do Coqueiro – está ocupada de forma permanente pelo menos desde os anos 1970. “Meu pai e meu avô andaram muito por aqui. Nos anos 80, eu mesmo vim para cá com eles”, conta Timóteo de Oliveira Karaimirim.

Mas segundo os estudos do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), há evidências de que a aldeia é ainda anterior, existindo já em 1940. “Pindo Poty era o centro de um vasto território ancestral guarani. Sempre foi uma grande referência para este povo, mesmo em tempos imemoriais” contextualiza Roberto Liebgott, coordenador do Cimi Sul.

É uma espécie de ponto estratégico porque está situada junto a um pequeno córrego, antes navegável, que deságua no Guaíba. Assim, permitia acessar pela água comunidades que estão na outra margem do Guaíba, nos municípios de Guaíba, Barra do Ribeiro e Tapes. Por terra, era fácil chegar a qualquer comunidade guarani do extremo sul: Cantagalo, Itapuã, Belém Novo, Lomba do Pinheiro. Por isso, ao contrário de outros territórios, a aldeia  nunca teria ficado vazia.

Pindo Poty está na mira da Fundação Nacional do Índio (Funai) desde 2006, quando um grupo de trabalho realizou um levantamento das demandas fundiárias dos guaranis no Rio Grande do Sul. Mas apenas em 2012 o processo de demarcação teve início formalmente – depois de muita pressão dos indígenas e do Ministério Público Federal, que moveu um Inquérito Civil Público para agilizar a promessa da Funai, feita em Brasília quatro anos antes.

Cacique Timóteo (Foto: Naira Hofmeister)

A portaria que nomeou o grupo técnico para estudar a área determinou que o relatório fundiário deveria ser entregue em 60 dias, mas até hoje os indígenas aguardam para ver publicados os estudos que comprovariam sua posse do território. Eles sabem que em 2017 o documento ficou pronto, mas aí veio 2018, e a eleição de Jair Bolsonaro para a presidência da República sob a promessa de que nenhuma terra indígena seria reconhecida em seu mandato.

Com a pandemia, o contato com a Funai cessou, e as invasões da área, que não são um fenômeno recente, aumentaram. As casas construídas pelas pessoas estranhas aos indígenas estão ficando cada vez mais próximas do núcleo onde eles moram. O próprio órgão indigenista reconheceu esse conflito no ano passado, quando admitiu ao Ministério Público Federal que concluiu que um “empreendimento está na área titulada, sendo certo que citado local coincide com a área de interesse dos indígenas”.

Mas este ano, provocada novamente pelo procurador da República Jorge Irajá Louro Sodré, a Funai disse que não podia atuar em defesa dos indígenas porque “a área supostamente indígena Lami não possui polígono aprovado até o momento visto que os estudos de identificação e delimitação ainda não foram concluídos”. Isso apesar de desde 2019 haver uma decisão judicial “determinando a conclusão dos estudos” de identificação do território indígena. “No momento, o antropólogo coordenador está encaminhando a consolidação do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação em cotejo com o material resultante dos estudos fundiários”, informou em 28 de janeiro.

Diante da omissão da Funai, o procurador Irajá informa que o MPF vai ajuizar uma ação de reintegração de posse. “Neste momento, solicitamos à divisão interna diligência para identificação e fotografias da quantidade de habitações construídas sem a autorização da liderança indígena e qualificação dos esbulhadores (invasores)”, revelou, em nota enviada pela assessoria de imprensa do MPF.

Miséria do outro lado da cerca

Famílias instaladas em barracos de madeira reivindicam área (Foto: Naira Hofmeister)

Do lado de lá da cerca não prevista pelos guaranis, uns 15 metros adiante de uma placa da Funai que informa que ali é uma área indígena, Leonel Hoch, ou Nelinho para os íntimos, faz questão de repetir: “isso aqui não é uma invasão”. Ele e seus companheiros admitem que entraram na área para marcar terreno, mas dizem que também é seu direito estar ali.

Segundo Nelinho, eles são parte de uma “antiga cooperativa” – da qual ele não lembra o nome nem a atividade – que seria a dona original de um pedacinho da área indígena. “Já teve muita briga na Justiça, mas até agora não recebemos nada, então viemos aqui para garantir o que é nosso”, ele diz.

De fato, há uma ação de reintegração de posse que corre na Justiça Federal do Rio Grande do Sul, movida pela Federação dos Trabalhadores nas Indústrias da Alimentação do Estado do Rio Grande do Sul. Na verdade, foi graças a uma decisão judicial neste caso, que o processo de demarcação começou a andar na Funai.

A vida nos barracos que eles ergueram não é fácil porque, sendo ilegal, a ocupação não tem água encanada nem luz, embora um dos homens (que preferiu não se identificar) tenha dito que já mora ali com toda a família, o que inclui seus 11 filhos e três pessoas com deficiência. “Chegamos mais ou menos há nove meses. Tá muito difícil viver de aluguel, eu pagava mais de mil reais por mês. E agora na pandemia, o serviço acabou”, justifica.

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