Reportagem

Famílias denunciam mortes por negligência no Hospital Vila Nova

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Famílias denunciam mortes por negligência no Hospital Vila Nova Localizado na zona sul de Porto Alegre, o Hospital Vila Nova atende apenas pacientes do SUS. Foto: Cristine Rochol/PMPA

Ministério Público investiga “sequelas e óbitos de pacientes em decorrência de negligência médica e de profissionais da enfermagem” em unidade de Porto Alegre que atende só ao SUS

Em uma sexta-feira de setembro de 2022, o aposentado Flávio Timm, 80 anos, foi encaminhado para internação no Hospital Vila Nova, zona sul de Porto Alegre, após ser atendido em uma UPA no norte da capital. Seu quadro era uma crise de hipoglicemia, complicação que leva a palpitações, confusão e desmaios, causada pela queda nos índices de açúcar no sangue. Apesar da condição ser delicada para idosos diabéticos como Timm, ele foi direcionado para exames e depois passou o fim de semana internado sem novas avaliações médicas, que deveriam ter sido diárias. Uma médica foi designada pelo Vila Nova para vê-lo segunda-feira cedo, mas não apareceu. 

Após a ausência, a família de Timm contatou o consultório privado da profissional, que no Instagram diz ser especialista em saúde da pele e cabelos. “Ela só retorna ao hospital amanhã”, explicou sua secretária por WhatsApp. “Creio que tenha ocorrido algum problema de comunicação com a equipe do hospital”, completou

A médica só apareceu na terça-feira e trouxe para Timm o diagnóstico de cálculos nos sistemas urinário e digestivo, além da suspeita da recidiva em estágio inicial de um câncer na bexiga. As informações constavam em laudo emitido ainda no fim de semana da internação. A situação exigia transferi-lo para consultas e exames de urologia em outro hospital, mas o pedido foi cadastrado no sistema da prefeitura com cinco dias de atraso. 

Na ocasião, quando foi atendido pela médica pela primeira vez, o idoso completava quatro dias sem a sonda de alimentação especial que lhe havia sido prescrita na UPA para melhorar a glicemia e hidratação. No período, técnicos de enfermagem orientaram a família a dar balas a Timm sempre que a hipoglicemia voltasse. Uma nutricionista só apareceu no sexto dia de internação para examiná-lo e prescrever a sonda especial. 

Na madrugada de sábado para domingo, enquanto acompanhava o pai na internação, a filha, Adriana, notou a respiração dele se esvaindo. Menos de uma hora antes, Timm havia recebido um sedativo e morfina de enfermeiros. Ela insistiu que viessem acudir o pai. Quando a equipe médica atendeu aos apelos da filha, Flávio Timm já estava morto. Não houve tentativas de reanimá-lo. 

“Conforme informação, paciente encontrado desacordado, tempo indeterminado de parada cardíaca”, diz o prontuário médico de Timm. “Ausência de batimento cardíaco ou movimento respiratório. Constato óbito dia 18/09/2022 às 01:15h.”

Relatório de auditoria da Secretaria Municipal de Saúde identificou inconsistências no atendimento de Flavio Timm. Reprodução: SMS/POA.
Relatório de auditoria da Secretaria Municipal de Saúde identificou “não conformidades” no atendimento de Flavio Timm. Reprodução: SMS/POA.

As circunstâncias da morte do aposentado integram um inquérito que tramita na Promotoria de Justiça de Defesa dos Direitos Humanos do Ministério Público (MP-RS) desde setembro do ano passado. O procedimento reúne ao menos outros oito relatos de negligência ocorridos no Vila Nova e apura as “condições sanitárias, de estrutura física, assistencial, recursos humanos e processos de trabalho” do hospital. De acordo com a promotoria, as informações recebidas até agora “dão conta de sequelas e óbitos de pacientes em decorrência de negligência médica e de profissionais da enfermagem que exercem atividades no Hospital Vila Nova”. 

“Só tem médico lá para assinar o óbito”, diz Adriana, filha de Flávio. A declaração emitida pelo hospital descreveu para Timm uma morte natural por “parada cardiorrespiratória, senilidade, diabetes e hipertensão”. Termos genéricos para uma certidão do tipo, segundo o manual para documentação de óbito do Ministério da Saúde.

Sobre os casos de negligência e desassistência investigados pelo MP-RS, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Porto Alegre disse ao Matinal estar “ciente da situação” e “fazendo as intervenções necessárias”. “Foi realizada auditoria, visita de fiscalização e plano de ação junto ao prestador dos serviços”, afirmou a secretaria em nota. “A pasta mantém acompanhamento e avaliação de qualidade assistencial”. 

Contatada por meio de sua assessoria de imprensa, a Associação Hospitalar Vila Nova não respondeu nenhuma das perguntas enviadas pelo Matinal. A entidade se limitou a dizer que “todos os questionamentos realizados pelos órgãos de fiscalização já foram devidamente respondidos e elucidados pela Associação Hospitalar Vila Nova (AHVN)”. 

A AHVN também gere o Hospital da Restinga e Extremo Sul, localizado no bairro Restinga, e é a responsável pela atenção primária em saúde do SUS na zona sul da capital gaúcha, administrando 25 unidades e 63 equipes de saúde da família. Só em 2023, recebeu R$ 85,6 milhões da prefeitura e R$ 41,6 milhões do governo estadual, segundo o portal da transparência de Porto Alegre e do Piratini. Em 2022, foram R$ 148,1 milhões.

Internação superlotada e suja

Em março, a internação de Flávio Timm no Hospital Vila Nova foi alvo de uma auditoria realizada pela SMS para apurar “possível negligência no atendimento” ao aposentado. O relatório da pasta identificou sete “não conformidades” durante a internação, como ausências de suporte nutricional, de registros em prontuário e de prescrições e avaliações médicas, além de um atraso de cinco dias na realização de um pedido de transferência para exames em outro hospital em decorrência da suspeita de recidiva de um tumor.

Quando a família recebeu a notícia do diagnóstico, foi informada que a fila para essa transferência era de 45 dias. Em seguida, o idoso foi realocado para um quarto “superlotado, sujo e com formigas pelas paredes”, segundo Fabrício Timm, filho de Flávio. Ele fez seguidas queixas à ouvidoria do hospital pela demora e negligência, já que o pai também sofria de dores devido a um cateter urinário. Em resposta, ouviu do gerente médico do hospital que o idoso “não corria risco de vida” e que “o processo interno” no Vila Nova era “lento” e poderia “se tornar mais” se as reclamações continuassem.

“Tu não enxergas um médico no hospital: é um amontoado de técnicos de enfermagem e um enfermeiro-chefe”, diz Fabrício, que cogitou levar o pai embora da unidade no colo, revoltado pela falta de assistência. “Eu preferia que meu pai tivesse morrido em casa, perto da gente, do que sofrendo naquele lugar.” 

Os fatos foram relatados pela família ao Conselho Regional de Medicina (Cremers), que também foi notificado pela SMS do relatório que identificou inconsistências no atendimento ao paciente. “Todas as denúncias correm em sigilo no Cremers”, disse o órgão ao Matinal. “Por isso, não podemos dar detalhes sobre o caso.” 

O MP-RS também acionou o conselho em decorrência das negligências investigadas no inquérito. Em resposta ao órgão sobre a assistência prestada a Timm, o hospital respondeu que “a todo momento da internação, o paciente e a família receberam acolhimento multiprofissionais necessários”. “Entendemos o processo de luto, de aceitação das fragilidades e do desfecho que tomou o caso, mas sabemos também que tudo foi visto, revisto e as condutas relativas ao manejo do quadro apresentado devidamente tomadas”, justificou a Associação Hospitalar Vila Nova. 

“Hoje a nossa família vive com culpa”, diz Fabrício, que precisou deixar o emprego para acompanhar o pai durante a internação. Hoje, já empregado, ele diz que a família avalia processar o hospital. “Não quero dinheiro, e sim que sejam presos”, afirma. “Quanta gente não morre lá por descaso?”

Auditoria concluiu que houve sete "não conformidades" no atendimento a Flávio Timm e sugeriu que MP-RS e Cremers investigassem Reprodução: SMS/POA
Auditoria concluiu que houve sete “não conformidades” no atendimento a Flávio Timm e sugeriu que MP-RS e Cremers investigassem Reprodução: SMS/POA

Negligências em série

Em abril, o hospital foi alvo de uma segunda auditoria da SMS referente a uma suposta negligência no atendimento a outra pessoa idosa, ocorrida em janeiro. Na ocasião, o processo correu sem retorno do hospital Vila Nova e constatou três “não conformidades”: falta de avaliação médica, prontuário com registro de sinais vitais idênticos ao longo de dois dias e suspensão dos antibióticos prescritos anteriormente. O relatório concluiu que a falta de assistência médica pode estar ocorrendo sobretudo aos finais de semana, já que o cenário de desassistência foi semelhante ao constatado no caso de Timm, ainda que três meses depois.

Representantes da AHVN chegaram a se reunir com o MP-RS em março porque a promotoria sentiu “dificuldade de obter respostas aos ofícios dirigidos ao Hospital Vila Nova, devido à demora e envio de respostas incompletas”. 

Na ocasião, a entidade justificou o mau atendimento por causa de uma “grande rotatividade de pessoal de enfermagem na instituição, pois, como atendem pelo SUS, o salário é inferior ao de outras instituições”, o que geraria “dificuldade de treinamento”. O hospital não forneceu números sobre a quantidade de médicos, apesar das solicitações do MP-RS.

Em outra denúncia de negligência mais recente, do início de julho deste ano, que também consta no inquérito, uma família buscou a Ouvidoria Nacional do Ministério das Mulheres para relatar que uma idosa com suspeita de câncer e internada há 31 dias no Vila Nova teria ficado mais de 24 horas sem medicações porque a equipe da unidade não conseguiu implantar um acesso. Segundo o relato, “nenhum médico compareceu para indicar algum outro procedimento necessário e na ata foi informado que o mesmo havia feito o atendimento”. 

O relato diz que, após a família ter denunciado a questão na ouvidoria do hospital, a equipe de plantão da unidade deixou de atender a idosa, que já teria perdido os movimentos e a fala, teve aumento do tumor e está com os rins parando. “A vítima está aguardando liberação do Juiz para transferência (de hospital) desde o dia 22/06/2023 para realização de biópsia, o médico forneceu laudo informando que a vítima corre risco de vida e até o momento nada foi feito”, afirma a denúncia. 

O caso foi anexado pelo MP-RS à investigação que apura as condições de atendimento e recursos humanos no hospital. Desde a semana passada, uma cópia deste inquérito de negligências coletadas pela Promotoria de Justiça de Defesa dos Direitos Humanos tramita também na Promotoria de Justiça Criminal. 

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