Reportagem

Transfobia e intolerância religiosa: pesquisador alerta para violações em comunidades terapêuticas

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Transfobia e intolerância religiosa: pesquisador alerta para violações em comunidades terapêuticas Foto: Andre Borges/Agência Brasília

Depois da aprovação do Dia Nacional das Comunidades Terapêuticas em comissão no Senado Federal, psicólogo e docente da Unisinos critica tratamento ofertado por essas instituições, a partir de relatos de usuários

“Acabo me envolvendo em relacionamentos extraconjugais, me atrapalho todo nisso, dá uma confusão que tu não tem ideia e, no final das contas eu acabo assim, no meio de muita pressão, voltando ao uso do crack. E aí me interno no único lugar que me ofereceram como opção”. Esse é o relato de um homem de 35 anos, branco, morador da região metropolitana de Porto Alegre, sobre sua segunda internação em uma comunidade terapêutica. 

Na primeira experiência, a abordagem no local partia do pressuposto de que o uso de drogas é uma “doença incurável, progressiva”, algo a se tratar para o resto da vida, como descreve o paciente. Sua segunda história de internação é bastante distinta. Nesse novo lugar, em um município do Vale do Paranhana, conduzido por uma denominação evangélica neopentecostal, a abordagem foi outra. Lá, a metodologia parte de uma leitura religiosa de que droga é igual ao mal, “igual a ação do diabo”, e a “recuperação é igual a conversão”, conforme conta.

Nessa comunidade, ele ficou por um ano. “Eu demorei um mês pra ligar uma TV depois que eu saí e dois meses pra jogar futebol, porque eu achava que era pecado”, disse o homem. Os relatos estão na tese de doutorado do psicólogo e professor Rafael Wolski de Oliveira, defendida em 2021 no Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Na pesquisa, ele conversou com 14 pessoas que se autodeclaram usuárias de drogas – algumas tiveram experiências em comunidades terapêuticas, tema que voltou ao debate público com a aprovação, no final de fevereiro, da criação do Dia Nacional das Comunidades Terapêuticas, pela Comissão de Assuntos Sociais do Senado Federal, com voto favorável do relator, o senador gaúcho Paulo Paim (PT). “A reintegração social é um pilar fundamental dessas comunidades, capacitando indivíduos a reconstruir relações saudáveis e a forjar um futuro renovado”, disse o legislador, à época.

De autoria do senador Flávio Arns (PSB-SP), o projeto foi amplamente criticado pela comunidade científica brasileira, por alegadamente fortalecer a política manicomial. O Conselho Federal de Psicologia (CFP), por exemplo, encaminhou ao Congresso Nacional nota na qual expõe contrariedade ao PL 3.945/2023. Há duas semanas, donos de uma comunidade terapêutica em Cajamar (SP) foram condenados a 31 anos de prisão por sequestro e cárcere privado, conforme reportagem do Intercept Brasil.

Para entender os significados dessa disputa, a Matinal conversou com Rafael Wolski de Oliveira. Ele é docente na Unisinos, doutor e mestre em Psicologia Social.

Oliveira entrevistou pacientes de comunidades terapêuticas

Matinal – Quais são as violações a princípios estabelecidos de saúde mental praticados nas comunidades terapêuticas?

Rafael Wolski de Oliveira – O que a gente entende por “comunidade terapêutica” também é um universo que tem diferenças entre elas. Não há um modelo único de comunidade terapêutica no contexto brasileiro. Há diferenças na compreensão de tratamento. Às vezes não se trata exatamente de uma comunidade “terapêutica”, no sentido original da palavra. Não raramente essas instituições estão imersas em denúncias e uma série de violações de direitos. Isso nos leva a crer que não é uma exceção, a violação de direitos acaba sendo uma prática muito comum, entre elas, a internação de forma compulsória. A gente tem lugares que, inclusive, se tu entrares nos seus sites, eles mesmos oferecem a remoção de pacientes. Eles vão até a casa do paciente e levam ele à força da comunidade, com ambulância, com uma determinação judicial. Outra questão é a intolerância religiosa. Muitas vezes são instituições religiosas, neopentecostal ou católica.

O estado do Rio Grande do Sul tem precedentes em relação a comunidades terapêuticas bem graves. Teve recentemente, ainda no período da pandemia, um incêndio na comunidade terapêutica em Carazinho, em que as pessoas estavam trancadas, uma prática comum nesses locais. Trancadas no ambiente sem poder sair. E o incêndio acabou matando 11 pessoas. Em Novo Hamburgo, houve situações de dois jovens que tentaram fugir de uma comunidade terapêutica e acabaram morrendo, caindo de um penhasco, porque estavam tentando fugir no contexto de desespero.

Matinal – Como você chegou aos relatos sobre as comunidades terapêuticas, e a que contextos eles se referem?

Oliveira – Na pesquisa de doutorado, alguns entrevistados relataram as vivências que tiveram em comunidades terapêuticas. Uma parte mais específica da pesquisa fala sobre os atendimentos disponíveis nas políticas públicas brasileiras, relacionadas às pessoas que fazem uso problemático de álcool e drogas. Com os relatos vêm uma série de violações de direitos, transfobia, intolerância religiosa. Essa mistura entre tratamento e religião entende o uso de drogas quase que exclusivamente como um pecado, e o tratamento muitas vezes se dá também pelo viés religioso ou mediante situações de trabalho forçado, em condições indignas. Às vezes por um período extremamente longo, o que se relaciona a um modelo de cuidados de saúde mental que a gente tenta superar já há alguns anos. Um modelo que está em desacordo com os princípios da Organização Mundial da Saúde e de países mais avançados nas questões de tratamento de pessoas que fazem uso problemático de substâncias, que começa a atrapalhar suas vidas. Mas que não é todo mundo que usa substâncias que acaba tendo um problema mais grave.

As pessoas que entrevistei relatam que, muitas vezes, elas mesmas procuram esses locais. O que a gente identifica é a ausência de políticas públicas que consigam garantir uma assistência digna para essas pessoas. Às vezes, a questão nem é o uso de drogas, ele nem está incomodado com isso, mas ele quer um lugar para dormir. Às vezes, ele quer se alimentar. A gente está falando de segurança alimentar, de política de moradia, de política de segurança pública. Há casos de pessoas que procuram esses lugares porque estão juradas de morte por dívidas com tráfico. Nas falas dos entrevistados, percebe-se que muitas vezes eles não entendem esse lugar como de tratamento para drogas, mas um lugar para dar conta de outras coisas que eles precisam.

Matinal – Há instituições laicas?

Oliveira – Se existem, são muito poucas. Elas não chegam a ser expressivas. Inclusive, há as federações mais importantes. A Federação das Comunidades Evangélicas e a Federação das Comunidades Católicas. Se existe alguma instituição que não tenha viés religioso, não necessariamente as práticas são diferentes também. As práticas de confinamento, de trabalho forçado e de castigos ocorrem em instituições de diferentes vieses, religioso ou não. Inclusive violações mais graves, como castigos, punições, sujeitos que ficam trancados. Eu participei de inspeção em 2011, do Conselho Federal de Psicologia, e recentemente, em 2018, houve uma nova inspeção nacional que também referendou os achados da anterior. O contexto continua o mesmo. 

Castigos, principalmente relacionados a trabalho. Por exemplo, a pessoa é pega fumando um cigarro e fica sem refeição. É uma lógica punitivista. E até casos mais graves de mortes, de situações de tortura, que também são relatadas por muitas pessoas que saem desses lugares, mas também através de ações do Ministério Público ou da própria polícia, que chega nos locais e verifica esse tipo de situação. As violações são inúmeras.

Matinal – Não seriam situações piores, em relação à dignidade da pessoa, do que estar na rua?

Oliveira – Trata-se também desse lugar que é dado ao sujeito que usa substâncias. Parece que, de alguma forma, o tratamento, se ele tiver indignidade, ainda assim seria melhor do que estar na rua, melhor do que fazer uso. Reflete o modo da sociedade de olhar para essas pessoas. Acaba sendo um lugar, de certa maneira, para tirar essas pessoas da vista. Tem esse caráter de isolamento, uma lógica higienista de cidade. A gente sabe, por exemplo, quando há eventos em determinados locais, retiram-se as pessoas que fazem uso, principalmente pessoas que estão em situação de rua. Hoje existem, inclusive, propostas de leis em alguns municípios para retirada das pessoas da situação de rua. Nem todas fazem uso problemático de substâncias, mas a gente sabe que a questão da droga é uma questão central nesses discursos e nessas práticas. Há uma questão de limpeza social.

Matinal – As pessoas costumam passar quanto tempo nessas comunidades, em isolamento?

Oliveira – Depende. Uma das violações também percebidas é que, teoricamente, o sujeito pode sair a hora que ele quiser. Mas não é isso que efetivamente acontece na prática. Tem instituições desde três meses até um entendimento de que nove meses ou um ano é o tempo adequado para o sujeito se livrar, teoricamente, das drogas.

Matinal – No propósito da interrupção do uso problemático de drogas, as comunidades são efetivas ou não?

Oliveira – Não, acabam não sendo. Um sujeito que está em abstinência, que interrompe o uso de uma forma abrupta, pode ter intercorrências de saúde importantes. Pode ter uma parada cardíaca, pode ter quadro de delírio grave, e esses locais não têm estrutura para dar conta dessas intercorrências. O local adequado seria um hospital. O problema do uso de drogas não é unicausal, não é só retirar a substância.

Existem uma série de outros fatores que precisam ser olhados. São locais que, em geral, não têm essa estrutura de saúde, de uma equipe, equipamentos necessários para dar conta de uma crise de abstinência, isso é feito de uma forma muito empírica. Em geral, quem cuida são pessoas que já passaram pelo processo de tratamento nesses locais são ex-usuários, não têm uma formação.

Matinal – Qual é a evolução nas últimas décadas das comunidades, como elas surgem? Como começam a ocorrer convênios com o poder público?

Oliveira – Daria para dizer desde a década de 70. Elas surgem justamente no vácuo assistencial do estado. Elas não surgem do nada. Inicialmente entram na lógica da caridade para assistir uma população que realmente não era atendida, não era incluída nas políticas de saúde. A gente está falando de um momento pré-SUS antes de 1988. Mas mesmo depois do SUS, o estigma voltado às pessoas que fazem uso de drogas ainda é muito forte. São pessoas negligenciadas no sentido de atendimento até em cuidados básicos de saúde. Há uma visão negativa das pessoas que fazem uso de drogas, principalmente as ilícitas. Obviamente, o uso de drogas vem aumentando ao longo dos anos, apesar de a gente ter uma política de repressão. O tráfico surge paralelamente. O consumo aumenta e essas instituições acabam se proliferando em grande número. Mesmo depois da reforma psiquiátrica, mesmo apesar de avanços como a construção dos CAPS-AD (centros psicossociais para álcool e drogas).

O número de CAPS-AD ainda é insuficiente para a demanda que existe. Outras instituições que foram criadas também tardiamente, como as unidades de acolhimento, que são serviços de residenciais de caráter transitório para as pessoas que fazem uso problemático de álcool e drogas, também existem em números quase inexpressivos. Elas tentam dar, dentro da política do Sistema Único de Saúde, uma resposta em relação ao aumento das comunidades terapêuticas. Aí sim, num viés laico, com respeito às questões de direitos humanos, e não com uma lógica punitivista. Mas elas são muito poucas. O aumento desses locais acaba sendo, obviamente, um fator também de capital, porque na medida que o estado começa a financiar leitos, vagas, isso começa a acender o olhar dessas instituições.

Matinal – É lucrativo manter uma comunidade?

Oliveira – Começa a dar lucro também. Elas fazem a própria comida, inclusive. Acaba sendo lucrativo, porque não tem um custo efetivo de equipe ou de equipamento. Tem instituições que recebem verba tanto do governo estadual quanto do governo federal. E às vezes os usuários são exibidos como pessoas em recuperação, em cultos, isso para fazer com que as pessoas também doem dinheiro, enfim, tem várias fontes de renda.

Matinal – É possível estimar se o número de vagas em comunidades terapêuticas supera o número de vagas em instituições que oferecem tratamentos reconhecidamente mais adequados?

Oliveira – Certamente supera. A gente não sabe precisar, inclusive, porque o financiamento dessas instituições, o financiamento público para essas instituições, o repasse de recursos, é extremamente difuso. Há também municípios e estados que financiam vagas,. Na lógica do governo federal, tem recursos que vêm do Ministério do Desenvolvimento, recursos que vêm do Ministério da Saúde, recursos que vinham do extinto Ministério da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos, muito recurso de emendas parlamentares, que também é uma fonte que a gente não consegue acompanhar.

Matinal – Em que contexto político se dá a aprovação do Dia Nacional das Comunidades Terapêuticas?

Oliveira – A gente vem numa certa esteira de obscurantismo, de ataque à ciência, em que o olhar técnico é colocado em questão. Isso ainda repercute na nossa sociedade, não é superado. Há um certo apego emocional à ideia de que onde tem essa ausência do Estado, tem alguém, tem instituições que tentam fazer algo. E a outra questão hoje é o lobby das comunidades terapêuticas, extremamente articulado no meio político. São organizados em federações. Na nossa sociedade, o uso problemático de drogas é um problema social grave. Ele não pode ser ignorado. Então, obviamente, existem correntes diferentes que entendem também como a gente vai tratar desse problema. A sociedade avança em questões de direitos humanos, mas também retrocede.

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