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Justiça decide em favor de família Maisonnave e determina que indígenas saiam de área no Morro Santana

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Justiça decide em favor de família Maisonnave e determina que indígenas saiam de área no Morro Santana Decisão desta semana ordena remoção para área onde vive outra etnia (Foto: Alass Derivas / Deriva Jornalismo)

“Esse senhor já tem o suficiente para viver”, diz cacica sobre família Maisonnave, dona de área no Morro Santana, zona leste de Porto Alegre

A Justiça Federal determinou a reintegração de posse do terreno no Morro Santana ocupado desde 18 de outubro por um grupo de indígenas Kaingang e Xokleng. Pela decisão da juíza Clarides Rahmeier, da 9ª Vara Federal, os indígenas têm até segunda, 19 de dezembro, para deixar voluntariamente o local. Caso não deixem o local, Rahmeier autorizou “execução forçada com apoio de força pública”. Os indígenas, porém, não haviam sido notificados até esta quinta-feira, dia 8.

Os dois povos reivindicam a posse da área, pertencente ao Grupo Maisonnave, que foi hipotecada ao Banco Central para saldar dívidas de R$ 183,7 milhões da família com o sistema financeiro nos anos 1980 – as dívidas nunca foram pagas, e a União não as cobrou nem expropriou o terreno no período de 30 anos, o que fez o processo caducar. 

O terreno pertence à Maisonnave Companhia de Participações, que planeja construir um loteamento, já aprovado pela prefeitura, com 11 torres, 714 apartamentos e 865 vagas de estacionamentos. 

A decisão da Justiça Federal deixou a comunidade apreensiva. “Nós não estamos roubando nada de ninguém, não queremos todas as terras do Brasil. Queremos um pedaço, que nos foi roubado para conservar a vida”, disse a cacica Iracema Gã thé Nascimento, com a voz embargada. “Esse senhor (referindo-se à família Maisonnave) já tem o suficiente para viver. Nós só queremos preservar o mato que dá oxigênio para as pessoas, para esses condomínios”. 

A maioria dos que habitam a área hoje são mulheres e crianças, 56 no total. Antes de ocuparem a área, os indígenas acessavam o terreno para colher os cipós com os quais fazem peças de artesanato, as ervas medicinais e fazer seus rituais. Um relatório antropológico feito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) mostra haver sólidos indícios, por relatos e resquícios, que os dois povos habitaram o local nos séculos 19 e 20. 

Os advogados do Conselho de Missão entre os Povos Indígenas (Comin), que assessoram os indígenas, entraram com uma liminar para suspender a reintegração de posse, ainda sem julgamento no Tribunal Regional Federal da 4º Região. Ministério Público Federal (MPF) também vai recorrer da decisão nos próximos dias. 

“Na decisão, a magistrada diz que não cabe o Judiciário conceder a posse da terra à Comunidade Indígena Kaingang e Xokleng sem o devido procedimento de constatação da Funai, mas essa área em breve vai estar totalmente descaracterizada, sem árvores e com torres de prédios enormes. Este procedimento pedido pela juíza é inócuo”, observa o procurador Pedro Nicolau Moura Sacco. “A decisão vai contra os direitos constitucionais dos indígenas e favorece uma pessoa que jamais pagou suas dívidas.” 

Em 9 de novembro, o MPF pediu à mesma juíza que fosse negada a liminar em favor da empresa, por haver “sólidos fundamentos” que os povos Kaingangs e Xoklens habitaram o local com base no amplo estudo da UFRGS. A ocupação da área é considerada uma “retomada” pelos dois povos de um local sagrado.

No pedido, o procurador Pedro Nicolau diz ser dever dos governos assumir “a responsabilidade de desenvolver, com a participação dos povos interessados, uma ação coordenada e sistemática com vistas a proteger os direitos desses povos e a garantir o respeito pela sua integridade” em obediência à Constituição Federal e à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). 

“Diferentemente dos comuns dos mortais endividados junto a entes federais, os Maisonnave jamais foram incomodados por suas dívidas. Como coroamento desse passado sombrio, agora obtiveram junto ao Município de Porto Alegre as autorizações necessárias para erguer, numa das últimas áreas de mata preservada de Porto Alegre, um condomínio para 2.500 pessoas. Podemos olhar com desdém para o passado, quando isso acontece agora?”, escreveu o procurador no pedido.

Área em disputa era de Preservação Permanente

A área fazia parte de uma Área de Preservação Permanente (APP), mas passou por uma nova classificação recentemente, passando a ser considerada “área de ocupação intensiva”, o que autoriza a construção no local. A nova classificação teria sido aprovada mesmo com a argumentação contrária de diversos conselheiros do Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano Ambiental, o CMDUA. 

Além de um sítio arqueológico, o Morro Santana é o ponto mais alto da Região Metropolitana e dele partem nascentes do Arroio Dilúvio. Segundo estudo da UFRGS, a região foi um território indígena até a chegada dos primeiros colonizadores e a fundação da “Sesmaria de Sant’anna”, a primeira a ser colonizada, segundo relatos historiográficos no livro “Do Morro Santana, a cidade de Porto Alegre”, de Vera Lúcia Maciel Barroso e Maria Osmari. 

“Eu não estudei, mas sei defender a vida, do meu povo, dos meus netos, sobrinhos, da mãe terra”, disse a cacica Iracema. A mestre espiritual do povo Kaingang morava no sopé do Morro Santana, próximo às cercanias do imóvel hipotecado, que ao longo dos 30 anos desocupado sofreu diversas modificações, com derrubada de árvores e plantio de espécies exóticas, denunciado pelos indígenas.

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