Reportagem

Como o lobby do ozônio retal chegou a um hospital do SUS de Porto Alegre

Change Size Text
Como o lobby do ozônio retal chegou a um hospital do SUS de Porto Alegre Conversas sobre pesquisa no Hospital Vila Nova começaram na gestão de Marchezan Jr. (Foto: Anselmo Cunha/PMPA)

Secretaria Municipal de Saúde deu apoio a estudo com ozonioterapia promovido por médica antivacina no hospital Vila Nova, mas não esclarece origem de verba que financiou a pesquisa

Uma articulação promovida pelo deputado federal Giovani Cherini (PL-RS) obteve apoio da prefeitura de Porto Alegre para viabilizar um estudo com ozonioterapia em pacientes com covid-19. A pesquisa está em curso no hospital Vila Nova, localizado na zona sul da capital gaúcha, que atende somente pacientes do SUS, com a previsão de inclusão de até 150 pacientes. 

Desde julho de 2020, voluntários internados com covid-19 na unidade podem receber sessões de insuflação retal e de auto-hemoterapia com o gás. O protocolo de pesquisa foi promovido pela Sociedade Brasileira de Ozonioterapia Médica (Sobom) e autorizado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). 

A ozonioterapia é considerada experimental, mas o uso retal do gás contra covid-19 tem sido estimulado desde o início da pandemia por prefeituras e unidades médicas País afora. Por falta de evidências de qualidade sobre sua eficácia, a Anvisa só autoriza o uso de ozônio para fins estéticos ou odontológicos. Já o FDA, agência dos EUA que regula medicamentos, proíbe seu uso terapêutico por considerá-lo uma substância tóxica

Detalhes sobre o estudo realizado na Capital constam em relatórios de gestão da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), que apoiou o projeto por meio da coordenação de Práticas Integrativas e Complementares (PICS) da pasta – desde 2018, a ozonioterapia faz parte da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC), que permite a oferta de terapias alternativas no SUS. 

Criada em 2006 para autorizar o uso na rede pública de práticas em saúde ligadas a tradições diversas à da medicina baseada em evidências ocidental, como acupuntura, ayurveda ou fitoterapia, a PNPIC passou a ser encampada por políticos como Cherini, que apoiaram a inclusão de terapias espiritualistas como constelação familiar, imposição de mãos e antroposofia no programa.

Cherini é presidente da Frente Parlamentar Holística e vice-líder do governo Bolsonaro (Foto: Nilson Bastian/ Câmara dos Deputados)

O antropólogo e professor da UFRJ Rodrigo Toniol, que pesquisou a implementação das PICS no SUS gaúcho, conta que a ozonioterapia é um fenômeno novo, popularizado de cinco anos para cá. “Nessa política, a justificativa para inclusão das novas terapias é relativamente frouxa porque basicamente tem a ver com alguma medicina com tradição de oferta no Brasil. Na prática, significa que todas as medicinas não hegemônicas podem ser incluídas no SUS, inclusive as obviamente não terapêuticas, como a constelação familiar”, afirma Toniol. 

Conforme o relatório anual de gestão 2020, o setor municipal das PICS articulou o estudo de ozônio retal junto ao gabinete de Cherini, presidente da Frente Parlamentar Holística e vice-líder do governo Bolsonaro. Os técnicos municipais participaram de reuniões que planejaram o atendimento em ozonioterapia e da busca por recursos públicos para financiar o projeto.

A coordenadora da pesquisa e presidente da Sobom é a médica Maria Emília Serra, responsável pelo uso de ozônio retal em Regina Hang, mãe do empresário Luciano Hang, e em Anthony Wong, médico pediatra entusiasta do suposto tratamento precoce, ambos mortos pela covid-19 após internações em unidades da Prevent Senior, envolvida no escândalo revelado durante a CPI da Covid – não havia aprovação da Conep para uso de ozônio na rede paulista. Perguntada sobre detalhes da colaboração entre Sobom, Vila Nova e prefeitura, a SMS não respondeu.

Me dá um dinheiro aí

O relatório de gestão 2020 da SMS cita uma suposta destinação de R$ 1,34 milhão de recursos do caixa do Ministério da Saúde ao estudo, o que configuraria um desvio, já que verbas com essa origem não podem custear pesquisas. O valor teria sido negociado por Cherini, mas liberado do orçamento do SUS para o custeio do atendimento à covid-19 no Vila Nova. “Deste valor, R$ 800 mil serão para pesquisa de saúde na prática integrativa Ozonioterapia (para covid-19) e R$ 541 mil para a central de PICS para saúde preventiva do hospital Vila Nova”, detalha o informe. 

O montante é compatível com um pedido que a coordenadora da pesquisa fez em uma audiência pública na Câmara Federal, em julho de 2020, dedicada a debater o uso de ozônio contra a covid-19. Na ocasião, Maria Emília Serra disse que uma pesquisa multicêntrica para 150 pacientes custaria quase R$ 800 mil. “Eu gostaria de solicitar verba da Câmara dos Deputados para isso. É muito bonito dizer que vamos fazer estudo, mas quem vai pagar? Somos nós que vamos tirar do nosso bolso, como médicos e profissionais?”, declarou a médica na audiência.

Em resposta ao Matinal, a SMS desmentiu seu próprio relatório e disse que o recurso do Ministério não custeou estudos com ozonioterapia, negativa corroborada por Brasília. Já a Sobom, coordenadora do estudo, noticiou em release de julho de 2021 que o projeto teria sido custeado por emenda de Cherini. Entretanto, não há registro de emenda do parlamentar destinada ao hospital Vila Nova no período, conforme levantamento realizado em portais federais, estaduais e municipais.

O hospital Vila Nova afirmou, em nota, que os valores mencionados na publicação do deputado e no relatório da prefeitura são de “verbas de complementação ao combate à covid-19, valores esses que foram utilizados para este fim específico”. Um plano de trabalho enviado pela SMS ao Matinal informa que o recurso em questão foi destinado à compra de oxigênio, materiais hospitalares, equipamentos e exames. 

Sobre a origem da verba que financiou a pesquisa, o Vila Nova, que é 100% SUS, alegou sigilo e não confirmou nem desmentiu se o recurso do MS ou qualquer outra verba de origem pública teria custeado os gastos com ozonioterapia. Já o deputado Giovani Cherini foi procurado por meio de dois de seus assessores, e-mail e telefone, tanto de seu escritório em Porto Alegre como o de seu gabinete em Brasília, mas não respondeu às tentativas de contato.

Enquanto o Conselho Federal de Medicina só permite a ozonioterapia em protocolos de pesquisa, o Conselho Federal de Enfermagem libera sua prescrição desde que normas da Anvisa sejam cumpridas – hoje, a agência só permite que o gás seja ministrado em humanos para fins estéticos ou odontológicos. “Atualmente, não existem equipamentos de ozonioterapia com finalidade terapêutica ou preventiva médica regularizados junto à Anvisa. No caso de produtos com indicações de uso diferentes daquelas já aprovadas pela agência, a situação é irregular”, disse a agência em nota. Ou seja, o uso clínico de ozônio, como no tratamento da covid-19, só é regular no âmbito da pesquisa científica.

Foi o caso do estudo realizado no Vila Nova, que teve aprovação da Conep para ser realizado em 20 unidades médicas do País, entre elas, o hospital de Porto Alegre, com a inclusão de até 150 participantes nacionalmente – cerca de 8 pacientes divididos para cada centro cadastrado. Um dos relatórios da SMS de 2020, no entanto, informa que o projeto havia realizado atendimento e acompanhamento de 15 pessoas e que “prosseguiria até completar 150 pacientes tratados” só na capital gaúcha. Ou seja, de 20 centros cadastrados para uso de ozonioterapia contra a covid-19, apenas um já comportaria o limite de participantes aprovado pela Conep – a extrapolação constituiria infração ética. Questionada, a Sobom não respondeu às perguntas enviadas pelo Matinal.

Lobby do ozônio retal

A aproximação entre a SMS e a Sobom ocorreu ainda no governo Marchezan, às vésperas das eleições municipais, na qual o ex-prefeito tucano concorreu à reeleição em coligação com o PSL e o PL – este presidido por Cherini no RS à época. Já nos primeiros meses da pandemia do coronavírus, o deputado pressionava o governo municipal pela adoção do ineficaz “kid covid”. Sem sucesso com a cloroquina, Cherini mirou no ozônio.

“O projeto da ozonioterapia nos hospitais da capital gaúcha conta com o apoio do Deputado Federal Giovani Cherini, do Prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan Júnior e do Secretário Municipal de Saúde Dr. Pablo Stürmer”, escreveu o deputado na descrição da live de lançamento do estudo, em 27 de julho de 2020. Na transmissão, estava presente a bióloga Marcia Jacobsen, coordenadora do setor das PICS na SMS, que afirmou que a SMS daria “apoio técnico” à Sobom e ao Vila Nova na realização do projeto.

Uma semana após a live, uma comitiva organizada por Cherini visitou o então ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, para apresentar a proposta do uso de ozonioterapia contra a covid-19. Na ocasião, o deputado disse que o Vila Nova estaria implantando o ozônio como “opção de tratamento” a partir do projeto de Maria Emília Serra, a ser realizado com anuência do Paço Municipal. 

“Em virtude dos profundos impactos causados pela pandemia na economia nos nossos sistemas de saúde e principalmente na saúde física e mental da população, esperamos o acolhimento e apoio desta proposta [de estudo com ozonioterapia no hospital Vila Nova] pela Prefeitura e Secretaria Municipal de Porto Alegre”, escreveu Serra no ofício dirigido a Pazuello.

Por parte da SMS, o objetivo da parceria foi capacitar profissionais que atuam na rede pública no tratamento alternativo e apoiar um estudo que poderia embasar sua implementação no sistema de saúde. “Os resultados da pesquisa irão beneficiar as propostas do serviço das PICS no SUS”, contou Jacobsen, que foi a responsável pelo acompanhamento do projeto descrito nos relatórios da SMS. 

A coordenadora das PICS na pasta explicou que Cherini recomendou a terapia ao cirurgião vascular Dirceu Dalmolin, presidente da Associação Hospitalar Vila Nova, que estava à procura de terapias complementares que pudessem auxiliar pacientes com pé diabético – o médico realiza de 8 a 10 amputações por conta da doença semanalmente. Nesse caso, a realização do estudo com covid-19 seria um primeiro passo para implementar o uso do gás no hospital, que planeja construir um ambulatório específico para terapias integrativas e complementares, projeto que também é apoiado pelo deputado.

O uso de ozônio em pacientes com pé diabético, no entanto, só seria possível no âmbito de pesquisas clínicas. Atualmente, a Sobom tem registro de um projeto do gênero, mas não cadastrou o Vila Nova no projeto. Conforme a plataforma da Conep, o cronograma do estudo terminou em setembro de 2020, mas até hoje os resultados não foram publicados. “Isso [ozonioterapia para pé diabético] está fora da nossa especialidade, já que cientificamente não tem comprovação. Feito em nível de pesquisa controlada, para tirar dúvidas, dar resposta, sim. Mas fazer na prática diária é considerado pseudociência”, disse o cirurgião vascular Seleno Glauber, coordenador médico do Hospital de Clínicas de Itajubá, em Minas Gerais, e editor científico da revista Ciências em Saúde. Glauber disse que a terapia é, provavelmente, inócua.

O objetivo do uso de ozônio é promover o “estresse oxidativo”, condição biológica na qual células são danificadas por radicais livres, que, por sua vez, são combatidos ativamente pelo sistema imunológico. Doses reduzidas do gás fomentariam essa reação, o que o tornaria capaz de auxiliar no tratamento de mais de 200 doenças, causadas por vírus, síndromes e cânceres. Só que o ozônio pode ser agressivo à matéria orgânica, razão pela qual a molécula é usada para sanitização de alimentos e ambientes.

A química Nádya Pesce da Silveira, professora do Departamento de Química Inorgânica da UFRGS, disse que a hipótese levantada pelos adeptos da terapia é que o estresse oxidativo promovido pelo tratamento seria curto demais para resultar em danos. Mas Silveira afirma que isso é questionável. “Não é só o tempo que é o fator principal, mas também a reatividade do material com qual o ozônio entra em contato e o pH do meio. É preciso estudos muito específicos para entender esse efeito em um determinado ambiente. O contato do gás com certas substâncias pode gerar até subprodutos tóxicos”, explicou. 

Conforme o protocolo do estudo aplicado no Vila Nova, os voluntários internados foram divididos em grupo-controle e outros dois grupos, que receberam duas formas diferentes de aplicação de ozônio ao longo de dez dias. Uma pelo ânus, por meio de um cateter de insuflação retal do gás, e a outra por “autohemoterapia”, técnica em que o sangue é coletado, ozonizado e depois injetado por via intramuscular de volta no corpo.  

Respostas desencontradas

Em relação ao post de Cherini que relata o apoio municipal à pesquisa, o ex-secretário de Saúde Pablo Stürmer, à frente da pasta à época, disse não apoiar o uso de terapias sem comprovação científica na rede pública de saúde, destacando que a publicação do deputado deixa claro que o projeto tinha caráter científico. O ex-secretário afirma não ter se envolvido no assunto, que estava a cargo da coordenação chefiada por Jacobsen. 

Na época, ao viajar ao RS para ministrar o treinamento com ozônio, Maria Emília Gadelha Serra disse em seu Instagram estar “iniciando a implantação da ozonioterapia em hospital do SUS”. “Eu lembro de alguma conversa com o Vila Nova, mas no sentido de um estudo, e não como política pública”, recorda Stürmer. Contatada via WhatsApp, Serra ignorou as perguntas enviadas e bloqueou o repórter depois de enviar a seguinte mensagem: “não perca seu tempo”.

Maria Emília Serra é uma das principais expoentes do movimento antivacina brasileiro, com uma atuação que ganhou destaque durante a pandemia pela divulgação de informações falsas sobre o assunto. Antes da covid-19, porém, a médica integrativa já espalhava mentiras contra a imunização. Em 2017, após um episódio de supostas reações adversas à vacina do HPV em crianças acreanas, que passaram a sofrer crises convulsivas depois de uma campanha vacinal, Serra viajou ao estado dizendo que poderia curá-las de supostos danos neurológicos causados pelo imunizante. 

No Acre, Serra organizou a criação da Abravac, a Associação Brasileira de Vítimas de Vacinas e Medicamentos, que reuniu os pais e familiares dessas crianças, e participou de audiências públicas na assembleia legislativa estadual para promover o caso, o que impulsionou a hesitação vacinal no estado à época. 

Por conta do frenesi, uma equipe da USP investigou o caso a pedido do Ministério da Saúde, em análise que foi publicada na prestigiada revista científica Vaccine. A conclusão foi de que as crianças tiveram uma “reação de estresse relacionada à imunização” de origem psicogênica e não relacionada à vacina do HPV. Ou seja: as crises epiléticas tiveram origem na ansiedade e temor dessas crianças relacionadas ao ato de se vacinar. 

Até hoje Serra discorda do diagnóstico e fala em danos neurológicos, apesar das análises de ressonância magnética e eletroencefalografia realizadas pela USP terem atestado que as crises não tinham raiz neurológica. Valendo-se de um protocolo de pesquisa registrado na Conep, o tratamento ofertado pela médica às crianças contra as supostas reações adversas do imunizante foi a ozonioterapia.

Gostou desta reportagem? Garanta que outros assuntos importantes para o interesse público da nossa cidade sejam abordados: apoie-nos financeiramente!

O que nos permite produzir reportagens investigativas e de denúncia, cumprindo nosso papel de fiscalizar o poder, é a nossa independência editorial.

Essa independência só existe porque somos financiados majoritariamente por leitoras e leitores que nos apoiam financeiramente.

Quem nos apoia também recebe todo o nosso conteúdo exclusivo: a versão completa da Matinal News, de segunda a sexta, e as newsletters do Juremir Machado, às terças, do Roger Lerina, às quintas, e da revista Parêntese, aos sábados.

Apoie-nos! O investimento equivale ao valor de dois cafés por mês.
Se você já nos apoia, agradecemos por fazer parte da rede Matinal! e tenha acesso a todo o nosso conteúdo.

Compartilhe esta reportagem em suas redes sociais!
Share on whatsapp
Share on twitter
Share on facebook
Share on email
Se você já nos apoia, agradecemos por fazer parte da rede Matinal! e tenha acesso a todo o nosso conteúdo.

Compartilhe esta reportagem em suas redes sociais!
Share on whatsapp
Share on twitter
Share on facebook
Share on email

Gostou desta reportagem? Ela é possível graças a sua assinatura.

O dinheiro investido por nossos assinantes premium é o que garante que possamos fazer um jornalismo independente de qualidade e relevância para a sociedade e para a democracia. Você pode contribuir ainda mais com um apoio extra ou compartilhando este conteúdo nas suas redes sociais.
Share on whatsapp
Share on twitter
Share on facebook
Share on email

Se você já é assinante, obrigada por estar conosco no Grupo Matinal Jornalismo! Faça login e tenha acesso a todos os nossos conteúdos.

Compartilhe esta reportagem em suas redes sociais!

Share on whatsapp
Share on twitter
Share on facebook
Share on email
RELACIONADAS

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.