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Médico ameaça repórter do Matinal que investigou teste irregular com proxalutamida

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Médico ameaça repórter do Matinal que investigou teste irregular com proxalutamida Em 14 de março, os médicos Ricardo Zimerman (de preto) e Flávio Cadegiani (ao lado esquerdo de Zimerman) estiveram no Hospital da Brigada Militar para coordenar testes com proxalutamida sem autorização dos órgãos reguladores (Reprodução/Instagram)

Depois de intimidação feita pelo infectologista, diversos usuários vêm assediando o jornalista e a redação. Com mais de um registro por dia, violações à liberdade de imprensa cresceram 222% em 2020 no Brasil

Após a reportagem sobre teste de proxalutamida sem autorização da Anvisa em pacientes com Covid-19 no Hospital da Brigada Militar de Porto Alegre (HBMPA), publicada nesta terça-feira no site do Matinal, o repórter Pedro Nakamura e a redação foram alvos de uma série de ataques nas redes sociais. 

Antes mesmo da matéria ir ao ar, um dos médicos responsáveis por rodar o experimento, o infectologista Ricardo Zimerman, fez uma publicação nas suas redes sociais dizendo que iria processar Nakamura. Após tentativas de contato do repórter sem sucesso, ele também afirmou em seus perfis que havia sido procurado por “militantes disfarçados de ‘jornalistas’”. Em outro post, chamou a solicitação de entrevista de “assédio” e, sem provas, acusou o repórter de “assediar” e “ameaçar” colegas para conseguir informações. A partir da tentativa de intimidação do médico, as contas do Matinal foram tomadas por comentários com xingamentos, ameaças de morte e violência física dirigidas ao repórter. Houve ainda “ataques de negação de serviço”, ou DDoS, que são tentativas de sobrecarregar o servidor para impedir o acesso do público ao site do veículo. 

Ataques à imprensa cresceram liderados por Jair Bolsonaro

Nesta quarta, a Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) divulgou nota sobre o caso: “A Abraji condena a exposição das conversas de jornalistas nas redes sociais com o objetivo de direcionar assédio virtual contra esses profissionais e também as tentativas de derrubar os websites veículos de imprensa para dificultar o acesso a denúncias graves e de extrema relevância para o interesse público”, diz a nota.

Os ataques fazem parte de uma prática que vem sendo cada vez mais frequente no Brasil. De acordo com o Relatório Sombra 2020, produzido pela rede Voces del Sur, da qual fazem parte 13 organizações latino-americanas da sociedade civil que defendem a liberdade de imprensa, entre elas a Abraji, os alertas de violação à atividade jornalística no Brasil aumentaram 222% em 2020 em relação ao ano anterior, na contramão da tendência de queda em outros países. Foram 419 registros no ano passado, ou seja, mais de um ataque por dia. Os números estão diretamente relacionados ao aumento de 489% nos casos de agressões e ataques à imprensa. Em 2019, haviam sido feitos 130 alertas, ou menos de um a cada três dias. 

Esses alertas, que são notas escritas para divulgar casos verificados de violação da liberdade de expressão, liberdade de imprensa, acesso à informação ou segurança e proteção de jornalistas, foram motivados por ações do Estado brasileiro, ou seja, do presidente Jair Bolsonaro ou seus representantes, em 74% das vezes. De acordo com o relatório, “o governo Bolsonaro liderou uma estigmatização da imprensa que repercutiu no Estado e na sociedade”. “Ataques e assédio online se tornaram predominantes e sistemáticos, ameaças nas redes sociais deram lugar a ataques coordenados em massa e as instituições públicas, principalmente o sistema judicial, são constantemente usadas como armas contra os jornalistas. Freelancers e pequenos veículos são particularmente visados”, completa o documento.

De acordo o presidente da Abraji, Marcelo Träsel, ataques nesse formato têm sido recorrentes na cobertura da imprensa sobre profissionais da medicina que divulgam tratamentos que não são reconhecidos pela Anvisa ou comprovados cientificamente.

“Este é um caso que merece uma análise melhor. Pelo que acompanhamos na Abraji, há uma estratégia diferente, que surgiu há pouco tempo, de expor conversas privadas que se tem com jornalistas. Quando o repórter vai buscar o outro lado, uma prática fundamental e um preceito ético do jornalismo, pessoas ligadas ao bolsonarismo e à extrema-direita têm tido o hábito de fazer prints e publicar em suas redes sociais com a narrativa de que se trata de uma espécie de assédio. É uma estratégia bastante sofisticada, porque ‘vacina’ o seu público em relação à matéria que vai sair e não é algo que possa denunciar para o Twitter, por exemplo. Como os dados pessoais normalmente não são incluídos, os posts não são tirados do ar”, explica.

Registro e denúncia são essenciais para enfrentar o problema

Em sua Cartilha sobre medidas legais para a proteção de jornalistas contra ameaças e assédio online, a Abraji indica que este método “pode vir a produzir um profundo efeito inibidor (“chilling effect”) sobre os jornalistas” e que, muitas vezes, ações coordenadas acabam implicando “no redirecionamento das energias para resolver ou lidar com esse problema, em detrimento do exercício da atividade profissional”. No documento, a instituição ressalta a importância de ações que vão da investigação defensiva, incluindo print screens dos ataques e identificação das fontes de disseminação de mensagens, a denúncia nas cortes internacionais de direitos humanos.

Taís Gasparian, advogada membro da Comissão Especial de Defesa da Liberdade de Expressão do Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), reforça a indicação de que os casos devem ser registrados e informados às autoridades. Ela diz que os ataques à imprensa vêm crescendo nos últimos anos e que, por isso, a entidade tem tomado medidas para mitigar o problema.

“Buscamos capacitar advogados para que atuem na área, premiamos boas práticas ligadas à liberdade de expressão e de imprensa, denunciamos a entidades de direitos humanos problemas que estejam ocorrendo e, mais pontualmente, podemos indicar profissionais para trabalhar em assuntos ligados à liberdade de expressão”.

A Associação de Jornalismo Digital (Ajor), da qual o Matinal faz parte, acompanha o caso e avalia em conjunto com o Grupo diferentes medidas para proteger o profissional, a empresa jornalística e o direito de os cidadãos se informarem.

Inquérito no MPF-RS

A reportagem do Matinal mostrou que cerca de 50 pacientes com Covid internados no HBMPA teriam participado do “estudo” com proxalutamida sem autorização da Anvisa por orientação de dois médicos apontados como coordenadores do teste: Zimerman e o endocrinologista Flávio Cadegiani. A dupla é conhecida nas redes sociais e no meio científico por questionar a eficácia da vacina e o uso de máscaras. Em maio, Zimerman depôs na CPI da Covid a convite do senador Luis Carlos Heinze (PP-RS), para defender o uso de medicamentos ineficazes contra o coronavírus, de antiparasitários a antimaláricos. 

O medicamento experimental, um antiandrogênico que vem sendo divulgado pelo presidente Jair Bolsonaro e por apoiadores, foi receitado para pacientes com Covid-19. Além de não ter autorização comercial em nenhum lugar do mundo, a proxalutamida não possuía autorização da Anvisa para importação na época do teste em Porto Alegre. A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), órgão ligado ao Conselho Nacional de Saúde e responsável por aprovar as pesquisas clínicas realizadas em humanos no Brasil, também desconhece o caso. 

Segundo o blog da Malu Gaspar em O Globo, o Ministério Público Federal do Rio Grande do Sul abriu um inquérito no dia 13 de agosto para investigar o caso. “Os fatos relatados são assustadores”, diz a procuradora da República Suzete Bragagnolo, responsável pelo inquérito.

A reportagem de Pedro Nakamura sobre os testes com proxalutamida segue no ar no site do Matinal.

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