Reportagem

Farsa da proxalutamida: MPF entra com ações contra União, Estado e médicos

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Farsa da proxalutamida: MPF entra com ações contra União, Estado e médicos Comprimidos de proxalutamina entregues no Hospital da Brigada Militar | Foto: Acervo pessoal

Investigação revelada pelo Matinal mostrou que pacientes com covid-19 foram usados como cobaias em estudo irregular conduzido no Hospital da Brigada Militar pelos médicos Flávio Cadegiani e Ricardo Zimerman

O Ministério Público Federal (MPF) ajuizou duas ações civis públicas contra a União, o governo do Rio Grande do Sul e os pesquisadores Flávio Cadegiani e Ricardo Ariel Zimerman pelo estudo irregular que testou um medicamento experimental contra covid-19.

As ações pedem reparação por dano potencial à saúde e dano moral coletivo aos responsáveis por tratar pacientes com proxalutamida no Hospital da Brigada Militar, em Porto Alegre, e no Hospital Arcanjo São Miguel de Gramado, em março de 2021. As irregularidades do estudo conduzido no HBM foram reveladas em uma série de reportagens feitas pelo Matinal. O MPF considera a possibilidade de ter havido mortes em decorrência do uso da droga anti-androgênica: “Torna inverossímil descartar a possibilidade de morte provocada por toxicidade medicamentosa ou por procedimentos da pesquisa”, informa uma das ações.

Uma das ações coloca como réus o Estado do Rio Grande do Sul e o ex-diretor do Departamento de Saúde da Brigada Militar, Igor Wolwacz Júnior. A segunda aponta também como corresponsáveis o Município de Gramado, Márcio Rafael Slaviero e Márcio Pinto Müller, respectivamente superintendente e diretor técnico do Hospital Arcanjo São Miguel. “Se condenados, os réus poderão ter de pagar multa em valor não inferior a R$ 10 milhões em cada uma das ações”, diz a nota emitida pelo MPF na tarde desta quarta-feira, 24 de agosto, exatamente um ano após a primeira reportagem sobre o assunto publicada pelo Matinal.

• Releia as reportagens da série sobre o uso da proxalutamida

As ações são assinadas pelos procuradores Suzete Bragagnolo e Fabiano de Moraes. Ambas tiveram origem em inquérito civil instaurado na Procuradoria do RS  e na ProcuradToria de Caxias do Sul, a partir de representação da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). 

A denúncia trazia indícios de transgressões das normas vigentes sobre ética em pesquisa envolvendo seres humanos na condução do estudo “The Proxa-Rescue AndroCoV trial”, conduzido por Flávio Cadegiani. O objetivo do estudo seria avaliar a eficácia e segurança da proxalutamida, medicamento experimental utilizado em pacientes com alguns tipos de câncer, como o de próstata, no combate à covid-19. Conforme verificado pelo MPF, o protocolo da pesquisa foi aprovado pela Conep em janeiro de 2021, autorizando a sua realização em uma única clínica, em Brasília, mas a pesquisa ocorreu em hospitais gaúchos, em Manaus (AM) e Chapecó (SC). 

Em 26 de fevereiro de 2021, Cadegiani assinou termo de cooperação técnico-científica com Márcio Rafael Slaviero e Márcio Pinto Muller, para incluir o Hospital Arcanjo São Miguel na pesquisa – o termo conta com a assinatura do prefeito de Gramado, Nestor Tissot (PP). Durante aquele mês, mesmo sem autorização dos órgãos competentes, 63 pacientes do hospital foram tratados com proxalutamida.

Em 3 de março, Cadegiani assinou com o então diretor do Departamento de Saúde da Brigada Militar, Igor Wolwacz Júnior, dessa vez para incluir o hospital da instituição em Porto Alegre na execução do estudo. Também sem qualquer autorização dos órgãos competentes, 62 pacientes do hospital completaram o tratamento com o uso de proxalutamida, sob responsabilidade do médico Ricardo Ariel Zimerman.

No total, informa o MPF, a pesquisa contou com 778 participantes – a Conep havia dado autorização para testes em 294 pacientes. A solicitação de modificação do protocolo com o pedido de inclusão de centros de pesquisa e o aumento do número de participantes, diz a ação, só ocorreu quando o estudo já estava concluído, e não foram aprovadas. Em setembro de 2021, a Conep decidiu pela suspensão definitiva da pesquisa.

O estudo também foi objeto de investigação pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que, após as denúncias, decidiu pela suspensão cautelar, em todo o território nacional, da importação e do uso de produtos contendo a substância proxalutamida para fins de pesquisa científica, a partir de 1º de setembro de 2021.

Conforme revelou a reportagem do Matinal foi feito uso do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) diferente do aprovado pelo órgão regulador, com a retirada de trechos que garantiam os direitos dos participantes, como indenização e assistência em caso de danos, ressarcimento de gastos e fornecimento de métodos contraceptivos. A proxalutamida é um medicamento anti-androgênico que pode causar malformação no feto, sendo contraindicado o uso durante a gravidez.

Em relação aos óbitos ocorridos durante a pesquisa, os pesquisadores classificaram como não relacionados à droga. No entanto, segundo o MPF, esse entendimento não é sustentado por qualquer análise crítica ou informações sobre os critérios adotados para que se chegasse a essa conclusão. 

Segundo o MPF, o número de óbitos somente foi informado à Conep após solicitação do órgão, contrariando dispositivo do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que diz ser obrigação do pesquisador responsável comunicar as mortes imediatamente, seguido de uma avaliação sobre a necessidade de adequar ou suspender o estudo. Dessa forma, em que pesem as sucessivas mortes, o pesquisador continuou o recrutamento e o andamento da pesquisa.

Dentre as demais irregularidades apontadas durante a execução do estudo estão: falta de controle sobre da dispensação e rastreabilidade do medicamento estudado e do placebo; não apresentação de documentos sobre o curso e a condução do ensaio clínico; não acompanhamento da pesquisa realizada no Hospital da Brigada Militar de Porto Alegre ou no Hospital Arcanjo São Miguel de Gramado por um Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEP); uso da proxalutamida por pacientes após a alta hospitalar, em violação aos termos aprovados pela Conep.

Apesar de a Conep ter suspendido a pesquisa e representado ao MPF, os procuradores incluíram a União – da qual a Comissão faz parte – no polo passivo da ação por considerarem que o órgão falhou tanto na apreciação ética do protocolo de pesquisa, o que resultou na autorização inicial do estudo, quanto em seu acompanhamento. Na avaliação da procuradora Suzete Bragagnolo, uma pesquisa destinada a uso de medicamento em ambiente hospitalar não poderia ser aprovada, de modo unicêntrico, para uma clínica onde sabidamente não se realizam internações.

Contraponto

Na noite desta quarta-feira, Cadegiani se manifestou em seu Twitter sobre o caso: “A proxalutamida salvou centenas de vidas e sua segurança foi plenamente atestada (com o nossos estudos!) pela FDA, CONEP (sim!) e Anvisa, que aceitaram nossos estudos para aprovar os estudos finais com a molécula. Para isso, por óbvio seguimos tudo à risca. Isso é incontestável. Tenho muito orgulho e zero arrependimento de ter salvado muitíssimas vidas (mais um fato incontestável) e de ter seguido tudo rigidamente à risca dentro do que poderíamos fazer. Narrativas não tornam errado aquilo que é certo. Venha da onde for. Grande abraço a todos”.

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