Reportagem

Office boy assina R$ 39 milhões em contratos com a prefeitura de Porto Alegre e o governo do Rio Grande do Sul

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Office boy assina R$ 39 milhões em contratos com a prefeitura de Porto Alegre e o governo do Rio Grande do Sul Sede da terceirizada SV Apoio Logístico, no bairro Rio Branco, em Porto Alegre. Foto: SV/Reprodução

Único sócio-administrador da SV Apoio Logístico tem endereço na periferia de Viamão; operação da Polícia Federal indica que verdadeiros donos – um pastor e um advogado – usavam laranjas e fizeram contratos públicos milionários

No papel, Antonio Garcia é o único dono da SV Apoio Logístico desde fevereiro de 2021. Como sócio-administrador da empresa, o nome de Garcia assina um total de R$ 39 milhões em contratos com os governos Melo e Leite para prestar serviços de portaria, limpeza ou manutenção para secretarias, polícias, escolas e fundações. Na prática, porém, Garcia é office boy da SV e não participa do dia a dia de sua administração, segundo ele mesmo disse ao Matinal por telefone. 

Só com a prefeitura de Porto Alegre, o nome dele consta em contratos que somam R$ 25,8 milhões. As estimativas consideram os valores empenhados para a terceirizada desde o início de 2021 nos portais de transparência do estado e da capital.

Áudio em que Antonio Garcia diz ser office boy da SV

O endereço residencial de Garcia registrado no contrato social da SV fica em uma casa de tijolos localizada na ladeira de uma zona periférica de Viamão. Na residência moram familiares do office boy, que informaram seu celular e disseram que ele havia se mudado recentemente. Por ligação, Garcia confirmou ser sócio da SV e trabalhar na terceirizada com o empresário e pastor evangélico Carlos Serba Varreira, ex-secretário geral do partido Solidariedade no Rio Grande do Sul e ex-vereador de Butiá, município a 84 km da capital. 

Varreira foi preso pela Polícia Federal (PF) em maio de 2020 no âmbito da Operação Camilo, uma investigação que apurou fraudes e desvios de dinheiro em um hospital de Rio Pardo. Na ocasião, ele tentou fugir e jogou R$ 82 mil em espécie em uma lata de lixo. As autoridades o acusam de ser o sócio oculto de uma rede de terceirizadas, entre elas a SV, que usaria testas de ferro para ocultar a lavagem de dinheiro público desviado. Os contratos assinados por Antonio Garcia com a prefeitura de Porto Alegre e com o governo do RS foram firmados depois da operação.

De acordo com relatórios da força-tarefa consultados pelo Matinal, o pastor foi apontado como um dos “sócios de fato” da SV. A terceirizada, no entanto, não foi indiciada por não ter envolvimento direto nos desvios em Rio Pardo

Meses depois, Varreira foi solto com um habeas corpus concedido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e hoje responde em liberdade ao processo criminal. Procurado pela reportagem, o pastor da Assembleia de Deus não respondeu se segue à frente da rede apontada pela força-tarefa ou da SV. “Não tenho nenhum esclarecimento a prestar, apenas afirmo que é muito triste ver essa iniciativa de publicar fatos passados, que já foram objeto de notícia”, disse. 

Em visita à sede da terceirizada e após consulta à vizinhança, o Matinal apurou que Varreira vai regularmente à SV, cujo endereço fica no bairro Rio Branco, na capital gaúcha. Por e-mail, a empresa disse não ser investigada, atuar “em conformidade com as normas legais e com observância dos contratos firmados” e não ter “nada a esclarecer”.

Segundo a denúncia de 2020 da Polícia Federal, Varreira operaria uma rede de terceirizadas em parceria com o advogado Renato Walter, ex-assessor da Assembleia Legislativa do RS que, segundo a PF, atuou no setor de “gestão e contratos” do governo de transição de Eduardo Leite em 2018, por indicação do Solidariedade. Walter também foi preso temporariamente pela Operação Camilo. Até a pandemia da covid-19, a SV estava sediada em um escritório de advocacia mantido pelo pastor e pelo advogado no Centro Histórico de Porto Alegre e, no papel, era administrada por um técnico em informática de Butiá, Marcos Pacheco, também apontado como laranja pela PF. 

“A empresa (SV) tem servido como vigorosa fonte de recursos a Varreira, onde ele ocupa o cargo de diretor operacional com remuneração aproximadamente 10 vezes superior ao ‘pró-labore’ recebido pelo suposto sócio-proprietário Marcos Pacheco”, apontou a PF em 2020, conforme trechos da quebra de sigilo fiscal da operação a que o Matinal teve acesso. “Já Renato Walter mantém um suposto contrato de prestação de serviços jurídicos que lhe rende mensalmente mais de 20 vezes o valor do ‘pró-labore’ do referido sócio-proprietário”, detalha a denúncia. “Em 24 meses, esses valores superam R$ 670 mil.” O office boy Antonio Garcia sucedeu o laranja Marcos Pacheco no início de 2021, após o técnico em informática ter morrido.

Procurado pela reportagem, Walter disse que as acusações contra ele já estão sendo tratadas em ação judicial. Também afirmou que dará explicações no processo, e não à imprensa.

O nome de Garcia é assinado apenas digitalmente nos contratos com o poder público. Foto: reprodução
O nome de Garcia é assinado digitalmente nos contratos com o poder público. Foto: Portal da Transparência do RS/Reprodução

Dupla que “se move nas sombras” e usa laranjas, disse PF


No pedido da Força-Tarefa da Operação Camilo que se opôs à soltura do pastor e do advogado em 2020, as autoridades disseram que “a opção pela liberdade de Varreira e Walter certamente propiciará que ambos continuem engendrando negociatas com o propósito exclusivo de obter maiores vantagens de cunho patrimonial”. No texto, a PF afirmou estar “diante de uma dupla que vem agindo há muitos anos conjuntamente, que se move nas sombras, escuda-se, via de regra, por interpostas pessoas (laranjas)”.

Ainda de acordo com a investigação, Varreira e Walter estariam “à frente de um grupo economicamente poderoso” que, em 2020, alcançava “cerca de R$ 83 milhões efetivamente pagos” em serviços com o poder público, conforme os autos de processos decorrentes da operação. “Além disso, suas relações demonstram que os investigados são detentores de grande proeminência no mundo político partidário, o que, quase sempre, dificulta os trabalhos de investigação e fiscalização em razão da possível tentativa de influenciar testemunhas e outros investigados”, diz a PF.

Hoje, três anos após a operação, a SV tem um total de R$ 11,6 milhões em contratos vigentes com o governo de Sebastião Melo (MDB) em serviços de portaria e telefonia para a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) e a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), em Porto Alegre. Contatada, a SMS disse que os aspectos formais e administrativos da prestação de serviços da terceirizada estão regulares. “Quaisquer inconformidades apontadas pela fiscalização, as empresas estão sendo notificadas, conforme previsto nos contratos registrados”, afirmou em nota. 

No total, desde 2016, contando também os serviços já encerrados, a SV somou R$ 138 milhões em contratos com o Piratini e a prefeitura da capital, conforme levantamento do Matinal em portais da transparência. Até sua prisão, Varreira é quem assinava em nome do ex-sócio Marcos Pacheco a maior parte dos contratos firmados com o poder público. Hoje, o nome de Garcia “chancela” os acordos por meio de uma assinatura digital. Além dos governos estadual e da capital, a SV também mantém contratos com prefeituras do interior.

Horas após o contato telefônico em que confirmou ao Matinal ser office boy da SV, Garcia retornou a ligação e fez à reportagem um convite para uma entrevista presencial no escritório da empresa. Ao fundo, a voz de um terceiro lhe dava orientações. “Fala, fala”, dizia o interlocutor antes da ligação cair. A reportagem refez o contato, perguntou quem estava dando ordens a Garcia e pediu para conversar com os supostos “sócios de fato” da SV conforme a PF, Renato Walter e Carlos Varreira.

O office boy disse que estava “no trânsito com a esposa”, se despediu e encerrou a conversa. Mas se esqueceu de desligar a chamada. Garcia então iniciou um diálogo com o interlocutor que o orientava, sem saber que a reportagem o ouvia. “Renato, Renato, ele disse que queria conversar com o Varreira também”, disse. “Mas manda tomar no c* a matéria dele”, responde o terceiro. Na sequência, o office boy reclama da visita da reportagem a seu endereço residencial. “Ele falou que se quiser falar comigo, conhece minha família e tal, e eu com isso, né? Eu amo a minha família”, afirmou Garcia. “Eu mato ele, eu acho”. 

Sem saber que está sendo gravado, Garcia ameaça o repórter e fala com interlocutor identificado como ‘Renato’.

O interlocutor tenta acalmar o office boy, diz que repórteres “são assim mesmo” e que iria lhe contar a história de uma entrevista do “prefeito de Porto Alegre” à RBS. “Depois que ele saiu da RBS, ele falou ali com o pessoal ‘ah, o que vou fazer?’”, iniciou. Nesse momento, a ligação caiu, sem conclusão para a história. Por meio de sua assessoria, Melo negou ter qualquer relação com Varreira ou Walter. Por e-mail, Walter refutou ser ele o “Renato” da conversa com Garcia porque estaria “ruim em casa de cama”. 

Carlos Varreira assinava contratos para a SV em nome de Pacheco, testa de ferro que precedeu Garcia. A imagem é de um contrato firmado em 2019 com o governo estadual. Foto: Portal da Transparência do RS/Reprodução

Laranjal de terceirizadas

De acordo com a investigação da PF, o modus operandi da SV seria semelhante ao de outra terceirizada que teria Varreira e Walter como sócios ocultos e que também presta serviços à prefeitura e ao Piratini, a SLP Serviços. Hoje, a empresa tem R$ 4,4 milhões em três contratos vigentes com a prefeitura de Porto Alegre, dois deles para a Secretaria Municipal de Educação (Smed) e outro com a SMS. 

Até abril, a empresa também era a responsável pela manutenção predial das escolas municipais. Diretores de escolas contaram ao Matinal que a SLP prestava os serviços de manutenção pela metade ou de forma demorada e malfeita. Em junho, a empresa também começou a atrasar os salários de auxiliares de cozinha. No total, desde 2019, a SLP já custou R$ 56,1 milhões em serviços para a prefeitura da capital. Os contratos iniciaram no governo Marchezan, mas se multiplicaram na gestão Melo. 

Ao Matinal, a SMS, que a contrata para serviços gerais da terceirizada à própria pasta e aos hospitais materno-infantil Presidente Vargas e de Pronto-Socorro (HPS), disse que a prestação está regular. Já com o governo estadual, o total de contratos com a SLP a partir de 2018 soma hoje R$ 41,1 milhões já pagos. 

No papel, a SLP tem como único sócio-administrador Antonio Claudino desde 2017. Em 2020, após a Operação Camilo, Claudino disse à PF ser pedreiro, nunca ter ouvido falar na empresa, não ter bens e conhecer Varreira porque fez reformas em seu sítio e apartamento. Como Marcos Pacheco e Antonio Garcia na SV, Claudino seria um laranja da SLP.

O Matinal confirmou que, em 2017, época em que se tornou o único dono da SLP, Claudino trabalhava como operador de indústria gráfica em uma empresa de painéis que operava em Eldorado do Sul. 

A reportagem visitou o suposto endereço residencial de Claudino que consta no contrato social da SLP, de novembro de 2021. O local fica onde foi a sede da terceirizada apenas até 2020, em Cachoeirinha, a 20 km de Porto Alegre. Em conversa com a vizinhança, moradores disseram que ninguém morava na casa, que tinha uso apenas comercial. Hoje, no local funciona uma creche – lá, até hoje chegam intimações direcionadas a Claudino e à SLP, disse uma professora à reportagem. O suposto sócio nunca foi visto lá e, no espaço, eram frequentes “gritarias” promovidas por ex-funcionários da terceirizada que iam à então sede fazer cobranças. 

Após contato com a imobiliária que aluga a propriedade, a reportagem apurou que a SLP abandonou a residência com dívidas de IPTU e após os mandados de busca e apreensão da Operação Camilo, ainda em 2020. A casa foi deixada com o jardim e parte interna destruídos sem que a dona fosse informada de que policiais haviam arrombado a casa. Hoje, a SLP tem endereço na Avenida Cristóvão Colombo, na capital gaúcha. Por telefone, a secretária da terceirizada disse ao Matinal “não conhecer essa pessoa”, quando foi perguntada por Claudino. 

Em visita ao local, a reportagem apurou que Varreira vai regularmente à nova sede da SLP. Perguntado se segue à frente da empresa, o pastor não respondeu. Contatado por meio de uma rede social para perguntas, Claudino indicou o contato do advogado Rafael Ariza, também responsável pela defesa de Varreira e Walter das acusações das autoridades. Na época da Operação Camilo, dias após ter prestado o depoimento à PF em que admitia ser um laranja, o suposto testa-de-ferro passou a ser defendido por Ariza e, então, voltou atrás no que havia dito. 

Contatado, o advogado Rafael Ariza não quis prestar esclarecimentos sobre seus clientes. Ao Matinal, a SLP disse que todos os seus contratos são executados de forma regular e que suas obrigações legais são cumpridas. “A SLP possui todas as certidões negativas, assim como atestados de capacidade técnica emitidos pelos contratantes em razão da qualidade dos serviços prestados”, afirmou em nota. A terceirizada também negou ter qualquer relação com a SV. Uma auditoria do Tribunal de Contas feita após a Operação Camilo, no entanto, apontou que foram identificadas transações de R$ 575 mil da SV à SLP, o que indicaria “íntima relação entre os recursos das empresas, em benefício de seus reais operadores”.

De acordo com GZH, contratos firmados pela Smed com a SLP  foram firmados enquanto havia uma medida cautelar que a impedia de atuar junto à prefeitura da capital por conta das revelações da operação. 

Ao Matinal, o governo municipal disse que as contratações da SLP durante o gestão Melo foram feitas “em respeito ao resultado da licitação e levou em consideração o fato de que a própria administração reavaliou o ato administrativo que impedia a empresa de contratar com o Município, diante da falta de provas contra a empresa, o que culminou com o arquivamento da cautelar posteriormente”.

Segundo a investigação da Operação Camilo, Varreira também estaria à frente da Multiclean, terceirizada que prestou serviços à Smed durante o governo Marchezan e deu um calote de R$ 3,2 milhões nos funcionários. A atual sócia-administradora da empresa também seria uma laranja ligada ao pastor, segundo a PF. A reportagem ligou, mandou e-mail e foi ao endereço da Multiclean, mas não conseguiu localizar representantes da terceirizada. Hoje, o Ministério Público (MP-RS) investiga supostos subornos pagos por empresários ligados a Multiclean a procuradores municipais da capital.

O que diz o governo estadual

O Matinal procurou o governo estadual com dúvidas sobre a SV por meio da Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão (SPGG) após a assessoria do Piratini indicar a pasta para responder pelas contratações. A secretaria, no entanto, prestou contas apenas sobre os contratos firmados por ela, e não sobre os demais órgãos.

“A SPGG atualmente tem dois contratos de prestação de serviços com a empresa SV Apoio Logístico para atendimento da rede Tudo Fácil. As contratações ocorreram dentro da legalidade, após processo licitatório, no qual a empresa apresentou toda a documentação exigida por lei”, disse a SPGG em nota. “Além disso, após a celebração dos contratos, toda a gestão ocorre dentro dos preceitos legais e normativos, sendo a contratada fiscalizada regularmente. Caso haja algum tipo de atuação irregular, ou fora do que é previsto em lei, iremos apurar e serão tomadas as providências cabíveis.”

A SPGG também confirmou que, após ser informada das descobertas da Operação Camilo, abriu um procedimento em 2020 para apurar se Antonio Claudino era um laranja à frente da SLP. “Este processo administrativo está atualmente arquivado, aguardando o desfecho da denúncia realizada ao Ministério Público, para fins de continuidade no processo sancionatório contra a empresa SLP”, disse em nota. Hoje, a pasta mantém dois contratos com a terceirizada e afirmou atuar “de forma preventiva, repressiva e educativa junto às empresas contratadas com intuito de proteger a administração pública e os trabalhadores prestadores de serviços, que são a parte mais vulnerável nas contratações de serviços terceirizados”.

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