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Isolamento, omissão e prejuízo aos cotistas: as denúncias que pesam contra o reitor da UFRGS

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Isolamento, omissão e prejuízo aos cotistas: as denúncias que pesam contra o reitor da UFRGS Eventual destituição de reitor seria inédita na UFRGS | Foto: Tiago Medina / Matinal

Dentre as diversas atribuições de um reitor da UFRGS, uma das principais é presidir as reuniões da instância máxima deliberativa, o Conselho Universitário (Consun), que se reúne cerca de uma vez por mês. Há um ano e oito meses, Carlos André Bulhões, o reitor indicado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e que figurou como o terceiro na lista tríplice da eleição que disputou, não comparece às reuniões do Consun, do qual ele é o presidente. 

Não apenas não comparece, como ignorou algumas das decisões do Conselho ao longo de sua gestão, marcada pelo isolamento. Bulhões é reitor de uma das principais universidades brasileiras desde 2020, cujo orçamento é superior a R$ 2 bilhões por ano. 

Na próxima sexta-feira, o Consun votará a sua destituição que, se concretizada, será inédita na história de 89 anos da UFRGS. Para driblar a ausência do seu chefe máximo, o órgão teve de lançar mão de uma medida regimental para se “autoconvocar”. O parecer a ser votado sugere que o isolamento levou Bulhões a descumprir o preceito da gestão democrática, o que se espera, constitucionalmente, de um reitor de uma das maiores federais do país.

“A gestão democrática tem que se caracterizar pelo respeito e a observância das legislações e pelo bom funcionamento dos órgãos colegiados. Uma das prerrogativas do cargo de reitor é presidir, observar e fazer cumprir as decisões dos órgãos colegiados. No entendimento da comissão, esse ponto não vem sendo devidamente cumprido”, afirmou a presidente da comissão especial que analisou o pedido de destituição no Consun, professora Natália Méndez. O documento a ser analisado pelos conselheiros também sugere encaminhamento de denúncia sobre possíveis irregularidades da gestão Bulhões ao Ministério Público Federal (MPF). 

Caso dois terços dos conselheiros votem pela aprovação do parecer, o impedimento de Bulhões e da vice, Patrícia Pranke, estará aprovado pelo Consun. No entanto, mesmo com esse eventual resultado, o reitor e a vice não sairão do cargo de forma imediata. A decisão final caberá ao Ministério da Educação (MEC). 

Se ambos deixarem a reitoria, novas eleições serão convocadas, e os eleitos assumirão por um mandato de quatro anos. Em 2021, Bulhões e Pranke já tiveram as suas saídas recomendadas pelo Consun, mas o MEC arquivou o caso na época.

O que diz o parecer

A Matinal teve acesso ao parecer de mais de 120 páginas. O documento cita oito pontos centrais que pesam contra a atual gestão da UFRGS. São eles: 1) casos de censura envolvendo a comunicação institucional; 2) desrespeito às decisões dos conselhos superiores; 3) falta de cumprimento por parte da Administração Central de suas funções; 4) conflitos e judicialização de membros da comunidade universitária; 5) ausência do reitor nos conselhos superiores; 6) desmonte de projetos e programas que eram centrais para a vida acadêmica; 7) evidências de irregularidades, de falta de transparência na gestão de recursos e de tentativa de aprovação de projetos por parte da reitoria à revelia das  devidas instâncias da universidade; e 8) falta de gestão durante a pandemia e no retorno às aulas e atividades presenciais.  

O que mais pesa sobre o reitor é seu isolamento, que resulta numa gestão antidemocrática, no entendimento da comissão especial responsável pela análise do processo de destituição. As considerações finais dão conta que o pedido para a saída já se sustenta pelo não comparecimento de Bulhões às sessões de Consun às quais deveria presidir.

Segundo o parecer, também há evidências de que decisões que afetam diretamente o funcionamento das unidades acadêmicas vêm sendo tomadas pela administração central sem diálogo com as direções e que falta mediação de eventuais conflitos com segmentos da comunidade universitária, o que prejudicaria a crítica e a livre manifestação. 

A Matinal buscou contato com a reitoria da UFRGS para que Bulhões e Pranke se manifestassem, mas não houve retorno até o fechamento deste texto. O espaço segue aberto a manifestações. 

A falta de gestão democrática

O pedido que embasa o processo atual tem diferenças com relação ao anterior, que abordava principalmente mudanças na estrutura da UFRGS. Agora, conforme a professora Natália Méndez, há “evidências do descumprimento do princípio constitucional da gestão democrática, que faz parte do estatuto da universidade e instituições de ensino”, como a ausência nas reuniões do Consun. 

“Isso se desdobra em vários fatos que o parecer levantou, como o não comparecimento às sessões do Consun, o não cumprimento de deliberações do Consun e a criação de obstáculos a conversas com direções de unidades”, detalhou Méndez, que destaca o fato que as direções das unidades são eleitas diretamente por suas comunidades locais. 

Por causa dessa falta de comunicação entre unidades e reitoria, o andamento da vida universitária fica prejudicada em várias esferas. “Cria-se um ambiente em que não há diálogo, em que não se pode fazer a crítica ao atual gestor.” 

Isolamento até da própria vice

O parecer dá conta que Bulhões não se comunica nem com a própria vice. Uma das situações analisadas pela comissão foi a falta de transferência de comando da UFRGS na sua ausência ou férias. Em uma ocasião registrada, em dezembro de 2021, Bulhões teria interrompido as férias para evitar uma reunião de Pranke com diretores de unidades. O repasse do cargo à vice deveria ocorrer por questões legais da universidade, salientou Méndez. 

Outro problema apontado é a falta de um plano de gestão. Conforme Mendez, este documento é normalmente apresentado ao fim do primeiro ano do reitor no cargo. Em 2022, ela recorda, houve a apresentação de um plano, que teve parecer contrário. Depois disso, a reitoria não apresentou mais nenhum plano, o que fere o estatuto da UFRGS: “O Conselho (Universitário) não tem como fiscalizar se o plano está sendo cumprido, porque não há plano”, disse.  

Prejuízo a cotistas 

O parecer contra a gestão da UFRGS também indica que a atual reitoria tem prejudicado a lei de cotas na universidade. O documento cita a resolução do Consun da UFRGS que determina que a instituição garanta matrícula definitiva e estrutura após um semestre letivo, além de uma recomendação de suspensão de quaisquer procedimentos de encerramento de vínculo ou desligamento de estudantes que ingressaram nos anos de 2018, 2019 e 2020 e que permanecem com matrícula provisória. 

Ainda assim, encerramentos de vínculo ocorreram – inclusive reportados pela Matinal em 2021, numa medida que afetou quase 200 cotistas. “O resultado é expresso na criação de muitas vagas ociosas que quando realocadas para outros processos de ingressos não retornam como vagas para ações afirmativas. Esse atraso na implementação da Resolução 145/2022 tem resultado nos desligamentos de mais 161 estudantes cotistas em 2023, além da falta de transparência sobre os dados”, conclui o parecer.

Citada na matéria da Matinal, a então estudante Rochane Carvalho conseguiu retornar à UFRGS no fim de 2021 por meio de uma liminar obtida com apoio jurídico do Movimento Correnteza, que também denunciou a situação ao Consun. Rochane se formou em Jornalismo em 2023. 

Possível irregularidade no vestibular

Houve também uma denúncia com relação a uma possível intervenção indevida da reitoria em favor da inscrição de uma candidata que teria perdido os prazos recursais para matrícula, depois do vestibular 2020/1. “Houve uma primeira tentativa de ingerência de corrigir essa situação, pela atuação tanto de um pró-reitor, que teria incidido na abertura de um processo, inclusive com a assinatura do reitor, dando acordo”, detalhou Méndez, que salientou o papel de servidores públicos concursados na apuração do caso.

Ao fim, a candidata não conseguiu sua vaga na UFRGS, mas o caso é um dos que pode ser encaminhado ao MPF. 

Dois meses de reuniões

O trabalho da comissão especial que analisou o pedido de afastamento durou cerca de dois meses, com reuniões semanais. Apesar de não ser uma prerrogativa do grupo, pois não se trata de um julgamento, a comissão se propôs em ouvir o maior número de pessoas envolvidas de alguma maneira nas questões citadas. Bulhões se negou a participar, enquanto Pranke reuniu-se com a comissão. 

“Enquanto órgão assessor, juntamos uma série de documentos para melhor embasar o Consun. Nisso, o Conselho vai decidir se existem elementos para pedir a destituição ao MEC”, resumiu a professora, que presidiu a comissão composta por outros docentes, além de representantes do quadro técnico e de alunos. 

O parecer foi aprovado por unanimidade em setembro e registrado junto à documentação do processo em 18 de setembro. Desde aquele período, a comissão solicitava o agendamento de uma sessão para votá-lo. Pelo regimento da UFRGS, uma sessão que delibere sobre o afastamento do reitor deve ter pauta exclusiva. No entanto, quem define a pauta do Consun é o presidente do colegiado, que é o próprio reitor. 

Para que a sessão desta sexta-feira fosse marcada, parte dos integrantes do Consun usou da prerrogativa de autoconvocação, quando ao menos um terço dos 77 conselheiros pede o agendamento. Nesta convocação, 56 integrantes do Consun, sendo 39 titulares, assinaram o pedido. Consultados, Bulhões e Pranke se declararam impedidos de presidir a sessão, que será comandada por um dos decanos do Conselho. 


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