Reportagem

Prefeitura de Porto Alegre compra R$ 9 milhões em livros de empresa investigada pelo TCU

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Prefeitura de Porto Alegre compra R$ 9 milhões em livros de empresa investigada pelo TCU Foto: Divulgação/ Gabinete Jonas Reis

Escolas e editoras questionam seleção do acervo, que não contempla projeto pedagógico nem obras gaúchas. Para a compra, governo Melo “pegou carona” em pregão do governo de Sergipe que teve apenas um único fornecedor

Diretoras de 98 escolas municipais de Porto Alegre foram surpreendidas entre maio e junho deste ano com a chegada de 40 caixas de livros enviadas pela Secretaria Municipal de Educação (Smed). Cada escola recebeu cerca de 2,3 mil exemplares que vão de clássicos de Machado de Assis a quadrinhos de Calvin & Haroldo.

Feita com recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), a compra totalizou R$ 9,3 milhões e chamou a atenção da Câmara Municipal de Porto Alegre e de editoras gaúchas. O vereador Jonas Reis (PT), vice-presidente da Comissão de Educação, Cultura, Esporte e Juventude da Câmara, pediu uma investigação ao Ministério Público de Contas (MPC) do Rio Grande do Sul, alegando que não foi feita licitação. 

“Ninguém é irresponsável de comprar R$ 9 milhões em livros sem processo licitatório”, rebateu a atual secretária municipal de Educação (Smed), Sônia Maria Oliveira da Rosa. A compra de livros foi feita pela administração anterior da pasta, sob o comando de Janaína Audino, que confiou os recursos do Fundeb a uma modalidade simplificada de licitação, chamada Ata de Registro de Preços, autorizada em 2021 pelo governo estadual de Sergipe.

A licitação previa a compra de 4 milhões de livros e possibilitava a adesão de prefeituras de todo o país – o que se chama, informalmente, de “pegar carona” no pregão. Apenas Porto Alegre comprou mais de 230 mil livros, pelo preço médio de R$ 41 por exemplar.

O pregão exigia ao menos três orçamentos diferentes para ser escolhido o de menor preço, mas apresenta como único fornecedor a empresa Inca Tecnologia, com sede em Curitiba, no Paraná. A empresa fornece desde livros até brinquedos, passando por softwares e instrumentos musicais.

Desde maio de 2020, o Tribunal de Contas da União (TCU) investiga a dispensa de uma licitação de uma compra de R$ 912 milhões em aventais da Inca durante a pandemia. A empresa entrou no pregão de Sergipe quando já corria a investigação do TCU, ainda em andamento, e está também envolvida com a venda, com suspeitas de superfaturamento, de R$ 66,8 milhões de livros para o governo do Amazonas em agosto deste ano.

“Não tem como comparar preços de um material de um único editor. É preciso que seja comprovado que se trata do menor preço entre várias editoras. Isso deveria ter sido avaliado pelo governo de Sergipe, que fez o pregão, mas não foi”, entende o administrador Carlos Martins, especializado em Orçamentos de Obras para Licitações Públicas, que analisou os documentos a pedido do Matinal.

Como prova de pesquisa de preços, a Smed apresentou um documento com capturas de tela mostrando buscas no Google pela Inca Tecnologia. A seção “Empresas concorrentes e valores orçados” mostra a busca “comprar livros ‘biblioteca aventura na leitura’”, que retorna, previsivelmente, resultados vinculados à Inca: “Aventura na Leitura” é como a empresa intitula o acervo comprado por Porto Alegre. 

Ao justificar a adesão à ata de preços de Sergipe, a pasta diz “não ter sido encontrado em outra Plataforma a aquisição por entes federados ou venda por outras empresas em valores e quantitativos de itens iguais ou menor valor”. Mas o documento não menciona concorrentes, e a comparação de preços se limita a considerar um pregão que, em 2017, determinou a compra de livros por R$ 99 a unidade. 

Carlos Martins não encontrou indícios de que houve competição na escolha da empresa. “Pela documentação que vimos, não há evidências de pesquisa de mercado. Já vivenciei inúmeras licitações de obras, e nunca vi tanta falta de critérios como nessa compra de livros”, concluiu.

A Smed não informou o número de processo interno da licitação, pelo qual seria possível rastrear a destinação dos recursos desde o Ministério da Educação até o governo municipal.

O município de Viseu (PA), que também embarcou no pregão de Sergipe, cotejou preços junto a livrarias, procedimento que, segundo Carlos Martins, também não assegura a ampla concorrência. “O artifício das propostas de livrarias não faz sentido para um pregão desse tamanho. Se alguém decide comprar 4 milhões de livros, não vai comprar em livrarias, mas em editoras”, disse.

Tribunal de Contas suspendeu pregão similar em Pernambuco

Em setembro deste ano, o Tribunal de Contas de Pernambuco referendou uma cautelar suspendendo um pregão para compra de acervo bibliográfico para 13 municípios consorciados, também por meio de Registro de Preços, nos mesmos moldes do de Sergipe. A denúncia apontava a ausência de estudos prévios para a escolha do material e a existência de diversas editoras com acervo similar no mercado. 

Na decisão que suspendeu o pregão, o conselheiro Carlos Porto, do TCE-PE, disse que “a necessidade da contratação deveria ser respaldada por meio de parecer técnico-pedagógico, que indicasse as diretrizes/temáticas que serão trabalhadas ao longo do ano letivo”. De acordo com o voto, o recebimento de apenas um material didático em um chamamento público não justifica “direcionar o objeto licitatório para apenas uma solução”.

Especialistas questionam critérios para seleção de obras

O fato de a prefeitura de Porto Alegre ter “pegado carona” em um pregão com fornecedor único pode explicar a seleção do acervo, criticada por diretoras de escola e editoras locais.

“Os livros são maravilhosos, mas eu não teria comprado nenhum deles. Ninguém foi consultado. Houve diretoras que mandaram os livros de volta”, afirmou uma diretora, que não quis se identificar com medo de represálias. “Teríamos selecionado ‘Turma da Mônica’ em vez de ‘Calvin e Haroldo’, mais de acordo com as necessidades do nosso plano de ensino”. 

O vereador petista Jonas Reis pediu esclarecimentos à Smed para entender quem fez a seleção dos livros, por que as escolas não foram ouvidas e como foi feito o processo de compra. A resposta veio assinada pelo prefeito Sebastião Melo e chama atenção por usar como justificativa para a compra milionária trechos do site da Inca Tecnologia, a empresa que forneceu os livros. 

O parágrafo abaixo aparece no site da Inca e na resposta do prefeito a Reis: “A adoção do Projeto Biblioteca Aventura na Leitura é possibilitar (sic) a ressignificação dos espaços de leitura, integrando a literatura às diferentes linguagens. A prática da leitura torna-se um instrumento para o exercício da cidadania e para a participação social. O papel de cada um dos profissionais que atuam nas redes de ensino é mediar esse processo, ou seja, oferecer ao cidadão, na infância ou na adolescência, o caminho à cidadania plena pela via do conhecimento”.

Questionada pelo Matinal, a Smed respondeu que as obras foram selecionadas por duas bibliotecárias da pasta, mas não os critérios de escolha. O acervo é composto por três kits (educação infantil e fundamental 1 e 2), que correspondem ao já referido projeto da fornecedora, intitulado “Aventura na Leitura”. A coleção inclui clássicos de Machado de Assis, José de Alencar e Arthur Conan Doyle.

Segundo a professora Marília Forgearini Nunes, do Departamento de Ensino e Currículo da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), um acervo de clássicos não basta como “selo de qualidade” para justificar o gasto do dinheiro público. “Para os anos finais do Ensino Fundamental, não se pode dizer que são livros inadequados, mas grande parte está em domínio público. Por que foram comprados? A edição tem algum diferencial?”, questionou. 

De acordo com a doutora em Educação, a lista não esclarece “qual leitura e qual leitor” a capital quer desenvolver. “Para a educação infantil e os anos iniciais, alguns títulos indicam leituras meramente moralizantes, sem função literária ou de ampliação de repertório cultural”, observou, acrescentando que, idealmente, a Smed teria consultado as escolas da rede antes de fazer a compra.

Luis Gomes, dono da editora Sulina, estranhou a ausência de autores gaúchos entre os livros, bem como o fato de não ter havido consulta a entidades culturais do Estado. “Por que não chamar as entidades, como a Câmara do Livro do Rio Grande do Sul, o Clube dos Editores, a Associação Gaúcha de Escritores (AGES), os conselhos de Cultura do Estado e do Município? R$ 9 milhões é muito dinheiro”, ressaltou. 

Para Clô Barcellos, da Editora Libretos, a economia local foi negligenciada pela prefeitura. “Realizamos eventos com despesas próprias, até mesmo na Feira do Livro, na periferia, com doação de livros. Nossos autores participam de programas de leitura municipais e estaduais há anos, e nossos livros têm o aval da crítica e de público. Recebemos apoio da Lei Aldir Blanc, com valores apenas visando à sobrevivência. Já doamos livros para a Smed para a recomposição de uma biblioteca central que foi desmantelada”, lembrou.

Alexandre Brito, presidente da AGES e integrante do Conselho Municipal do Livro e Leitura, chamou a compra de “inaceitável” e “desqualificada”. “Preocupa o uso tão nebuloso dos recursos do Fundeb pela ex-secretária Janaína Audino. Sem critérios, sem ouvir a rede de ensino, professorado, corpo pedagógico, bibliotecárias, para orientar esta compra para o atendimento das reais necessidades da rede. Uma compra desqualificada, que se assemelha à de um saldão. Mais: é inaceitável uma aquisição desta monta que não contemple sequer uma única obra, uma única editora, uma única escritora ou escritor gaúcho”, completou.

A atual titular da Smed diz que autores e editoras locais foram contempladas em projetos como o “Adote um Escritor” e terão lugar em programas previstos para 2023. “O que não posso é eximir meu aluno de fazer a leitura de autores não gaúchos”, disse Sônia Maria Oliveira da Rosa.

A Smed afirma ainda que os volumes fazem parte de programas voltados para a alfabetização e a recomposição de aprendizagens após o período da pandemia. “Do 6º ao 9º ano, 50% dos alunos hoje repetem. Queremos uma cidade leitora, queremos alunos alfabetizados. O Plano Nacional de Leitura visa justamente isso: transformar espaços de leitura, bem como o seu acervo”, afirma a secretária.

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