Reportagem

Presidente da Corsan foi multado pela CVM por negligência em prestações de contas

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Presidente da Corsan foi multado pela CVM por negligência em prestações de contas Governador Eduardo Leite e o então secretário Artur Lemos em reunião com Roberto Barbuti (ao centro), presidente da Corsan (Foto: Gustavo Mansur / Palácio Piratini)

Antes de assumir a estatal, Roberto Barbuti foi denunciado por 23 demonstrativos contábeis irregulares; governo Leite nomeou o executivo, que lidera a privatização da estatal, com o processo em andamento

Correção 10/8: Além de Barbuti, foram alvos de investigação da CVM outros quatro ex-diretores de bancos – e não cinco, como indicava a versão anterior do texto.

Em abril de 2019, o governo Leite indicou para presidir a Corsan o advogado e administrador Roberto Barbuti, com a promessa de trazer um quadro “técnico” à estatal, dirigida por políticos nas gestões anteriores. Na época da nomeação, porém, o novo presidente da companhia de saneamento negociava um termo de compromisso com a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), órgão federal responsável por fiscalizar o mercado de capitais brasileiro. O motivo: uma série de prestações de contas irregulares entregues ao órgão por Barbuti entre os anos de 2010 e 2012, período em que geria fundos de investimento na Santander Seguros. 

Ex-diretor de alguns dos principais bancos em atividade no país, como Santander, Bank of America e Safra, o administrador foi escolhido pelo governo estadual por conta de seus quase 30 anos de experiência no mercado financeiro. Agora, Barbuti comanda o processo de desestatização da Corsan, que pode se tornar a primeira companhia do setor a ser privatizada no Brasil. Fundada em 1965, a estatal atende a cerca de 6 milhões de gaúchos, metade da população do Estado, em 317 municípios. Barbuti foi alçado ao cargo pelo governador Eduardo Leite (PSDB) e pelo então secretário de Meio Ambiente e Infraestrutura Artur Lemos Júnior (PSDB), agora chefe da Casa Civil.

A denúncia da CVM contra Barbuti se referia a 23 irregularidades em demonstrativos contábeis entregues aos órgãos fiscalizadores entre os anos de 2010 e 2012, período em que o administrador trabalhava como diretor-executivo da área de ações da Santander Brasil, na gestão de fundos de investimento em participações (FIPs). Após três anos de investigação, a Comissão constatou 17 informes semestrais e seis anuais em desconformidade por parte do administrador e abriu o processo em agosto de 2018. 

Além de Barbuti, outros quatro executivos do Santander mais o banco foram denunciados – no total, os seis acusados somaram 245 irregularidades contábeis. Em nota ao Matinal, o governo estadual disse estar ciente do processo sancionador na CVM à época da nomeação de Roberto Barbuti. Respondeu que o caso não se referia a “suspeitas de favorecimento, corrupção ou ato de má-fé” e sim a “atraso na entrega de relatórios burocráticos, que envolviam o banco Santander”. 

Não foi bem assim. Segundo o parecer do órgão fiscalizador, os demonstrativos não estavam irregulares por atraso. Estavam incompletos, trocados, não tinham os pareceres de auditoria independente ou sequer foram entregues, entre outras violações às exigências legais. 

Uma das atribuições da CVM é preservar os valores investidos pela população no mercado de capitais, o que exige a fiscalização dos fundos de investimentos em atividade no país. A responsabilidade de prestar essas contas ao órgão é dos gestores desses ativos, tipo de função exercida à época por Barbuti. “A falta de informação em formulários de referência ou a disponibilização de informações inconsistentes podem induzir o mercado a valores falsos, e investidores ao erro. A atuação da CVM vem no sentido de proteger a população na hora de alocar esses recursos”, explica o advogado Guilherme Champs, especialista em mercados de capitais e sócio-fundador do escritório Champs Law, de São Paulo. 

Segundo Champs, o órgão federal leva a consistência das prestações de contas muito a sério. Mais do que meros “relatórios burocráticos”, como justificou o governo estadual, os demonstrativos garantem aos acionistas que seus investimentos estão sendo geridos corretamente. Não à toa no cadastro de Barbuti de 2019, ano de sua indicação à presidência da Corsan, o processo em análise na CVM constava como contingência que pode “afetar seus negócios ou sua reputação profissional”.

Informe cadastral de Roberto Barbuti na plataforma da CVM traz o processo sancionador como fato relevante ao patrimônio, aos negócios e à reputação do administrador (Reprodução)

“Modus operandi” irregular

A investigação da CVM denunciou irregularidades nas contas de Barbuti e outros quatro ex-diretores dos bancos Santander e Santander Seguros ao longo de sete anos, entre 2009 e 2016 – o atual presidente da Corsan trabalhou no banco entre 2010 e 2012 e responde por esse período. No total, os executivos somaram 245 demonstrativos contábeis em desconformidade com as exigências em 81 fundos de investimento diferentes. Na época, o Santander negou a acusação de negligência, mas ainda assim Barbuti, o banco e seus ex-colegas propuseram um termo de compromisso, em dezembro de 2018. 

O termo é usado para sanar irregularidades mediante o compromisso dos envolvidos de não repeti-las. Além disso, prevê multa como punição aos acusados. “Se assemelha muito à questão de uma denúncia espontânea do âmbito tributário ou de uma leniência, que é quando a gente assume a prática por alguma irregularidade. É um acordo em que se põe fim à investigação uma vez que você se compromete a tomar as providências que o órgão achar cabível”, diz Champs. Segundo o parecer técnico da CVM que aceitou o termo, como nenhum dos ex-diretores tinha mandato ativo no banco à época da denúncia, o órgão aceitou o pedido de acordo por parte dos acusados, dado que a prática das irregularidades já havia cessado. 

A peculiaridade do mercado financeiro é que, por lei, paga-se a multa, mas não há confissão formal da infração, e o processo é extinto. Em nota, o governo estadual reforçou isso. Disse que “o termo de compromisso não indica reconhecimento de culpa” e que, após o acordo ter sido negociado com a CVM, o processo foi encerrado. 

De fato, não há reconhecimento de dolo quando se assina o compromisso com o órgão federal. Entretanto, ainda há a obrigação de indenizar os prejuízos ao mercado de capitais contidos nas denúncias dos órgãos fiscalizadores, mesmo que estas não sejam formalmente admitidas. Os executivos e o banco propuseram dividir um pagamento de R$ 350 mil em indenizações – R$ 30 mil por cada um dos cinco ex-diretores e R$ 200 mil pelo Santander. O órgão federal achou o valor baixo. A contraproposta da CVM foi de R$ 12,25 milhões.

As negociações se arrastaram até dezembro de 2019, quando Barbuti já havia completado oito meses de presidência da Corsan. No fim, o processo rendeu um total de R$ 4,79 milhões em multas para os denunciados, com o acordo sendo celebrado em março de 2020. Barbuti acabou multado em R$ 88,5 mil – e o Santander Seguros, divisão na qual ele era executivo, pagou uma fatia de R$ 2,8 milhões do valor total. O parecer da CVM afirma que o objetivo da indenização foi “desestimular a prática de condutas assemelhadas” às de Barbuti e dos outros ex-diretores.

Conforme um artigo publicado pelos ex-procuradores da CVM Alexandre Santos e Julia Wellisch, a assinatura de um termo de compromisso exige essa indenização por parte dos investigados mesmo quando não há prejuízos quantificáveis. Os valores são cobradas porque “apesar de não gerarem danos a investidores individualizados, [as irregularidades] acarretam, em tese, danos aos interesses difusos ou coletivos no âmbito do mercado de capitais, notadamente potencial lesão à integridade, à transparência e à confiabilidade, que são valores essenciais no mercado de que se cuida”, escreveram.  

Por esse motivo, o parecer do comitê da CVM que aceitou as condições do termo de compromisso e multou o Santander e seus ex-executivos foi bem contundente. “Considerando que as infrações identificadas decorrem de natureza institucional, representando um ‘modus operandi’ das instituições [os bancos Santander e Santander Seguros], esses diretores, por dever de ofício e por suas atribuições na responsabilidade pela administração e gestão dos fundos, participaram e tinham conhecimento das irregularidades”, detalha. O documento considera ainda que Barbuti e seus colegas “não atuaram no sentido de assegurar que as determinações da legislação fossem cumpridas”. 

A reportagem pediu detalhes ao Santander Brasil a respeito do “modus operandi” de irregularidades citado no parecer da CVM, mas o banco preferiu não se manifestar. Por e-mail, disse apenas que “as partes firmaram um termo de compromisso junto aos órgãos competentes, que encerra qualquer controvérsia a respeito do tema”.

Além da Corsan, Barbuti também preside o Conselho de Administração da Sulgás, outra estatal que Eduardo Leite pretende vender a participação do Estado até o final deste ano.

Prestar contas? Não sabia!

Em 2016, Barbuti foi autuado por outra falha na prestação de contas. O executivo não enviou à CVM o formulário anual obrigatório que informa os tipos e valores das carteiras de investimento sob sua administração, e também indica seus dados remuneratórios, jurídicos e tributários. Na época, o atual presidente da Corsan era chefe de Investimentos Bancários no banco Safra.

Notificado da autuação, Barbuti, que também é formado em Direito, pediu para não ser multado, conforme consta em um memorando do órgão. À Comissão, justificou a falha “pelo fato de não estar exercendo qualquer atividade referente à gestão, administração ou mesmo acompanhamento/assessoria de qualquer recurso de terceiro”. Com isso, disse que “não tinha a percepção da necessidade de apresentar documentos”. O informe em questão, chamado de ICAC, é obrigatório para todos os administradores com registro ativo na CVM que tenham ou não recursos sob sua gerência. 

O memorando afirma que o administrador recorreu da multa sem nem entregar o documento devido. As justificativas de Barbuti para a falha foram diversas: estava viajando de férias, seu e-mail no sistema estava desatualizado, entre outras. “Em que pesem os nossos esforços e apesar das notificações expedidas, o fato é que, como se comprova através do Sistema de Controle de Recepção de Documentos, o envio do informe sequer foi realizado até a presente data”, ressaltou o superintendente Daniel Bernardo, que analisou o caso em julho de 2016 – os informes, referentes ao ano anterior, deveriam ter sido entregues até maio. 

Com isso, Barbuti teve seu recurso negado pelo colegiado da CVM e foi obrigado a pagar uma multa de R$ 6 mil, um total de R$ 100 para cada dia sem apresentar o documento. “Não se pode admitir do participante [Barbuti] que, em sede de recurso, alegue sua própria negligência por não ter ciência da obrigação para se desvencilhar do pagamento da multa”, concluiu o memorando que amparou a decisão.

Perguntado sobre as multas, o governo estadual frisou que “não há relação” entre esses processos e “a atuação posterior do presidente na Corsan”. Já a companhia de saneamento disse por e-mail que “não tem legitimidade para responder a questionamentos sobre informações pessoais de seus empregados ou administradores”. A reportagem questionou, então, quem poderia responder pelo presidente da companhia senão a própria Corsan e se poderia contatar Barbuti diretamente. A estatal apenas reforçou sua resposta inicial.

Após a recusa da companhia, a reportagem tentou contato com Barbuti pelo seu perfil em uma rede social, por onde foram enviadas questões sobre as multas da CVM. O presidente da estatal não visualizou as mensagens. Caso ele retorne, este texto será atualizado com suas respostas.

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